quarta-feira, setembro 24, 2003

Golpes de Mar

Uma pequeníssima actualização no vasto mar de blogs sempre em expansão, uma "toute autre chose" sem nada a ver com a matéria histórica-cultural aqui dissecada e porque o humor é como a blogosfera, é de todos e faz bem, eis que surge das águas virtuais um rude golpe pela mão de marítimos de boa cepa, alguns grumetes e uns quantos lobos-do-mar. Para estes novos exploradores do riso, em particular aos impagáveis velejadores Camilo Alves e Cardoso Pereira, desejamos mão firme no leme e preces de bom vento... Haja vendaval.

terça-feira, setembro 23, 2003

Senhores do Mar (II)

Ouro, prata e colónias apetecíveis.
A relação entre pilotos portugueses e corsários ingleses manteve-se por muitos e frutuosos anos.
Para estes, a meta tinha-se tornado o ouro e a prata espanhola do Perú. O obstáculo da distância só poderia ser vencido com navios e pilotos aptos para uma viagem particularmente longa em mares não totalmente conhecidos. Mas o facto permanecia: este manancial não se encontrava senão à distância de uma viagem marítima. Era apenas uma questão de tempo.

O primeiro intruso nos mares do Sul foi um pequeno navio particular, o capitão foi Drake e o piloto um português. Os conhecimentos de Nuno da Silva, inesperadamente capturado ao largo de Cabo Verde, foram suficientes para auxiliar Drake a desferir porventura o golpe mais audacioso do século XVI no coração do império espanhol. Após uma brilhante travessia do Estreito de Magalhães, o corsário inglês dirigiu-se para a costa do Perú, onde saqueou cidades e capturou navios, conseguindo um valioso carregamento em metal precioso. Assim, em 1578, enquanto Drake cruzava as águas do Pacífico, prosseguindo a segunda circumnavegação bem sucedida do globo, em Portugal, o rei D. Sebastião e grande parte da principal nobreza morria em Marrocos e o trono ficara à mercê de inúmeros pretendentes, tendo sido finalmente conquistado por Filipe II.

De regresso a Inglaterra, o pequeno navio do corsário, o Golden Hind, descarregou um lastro de centenas de lingotes de ouro e prata ganho num cruzeiro de roubo e pilhagem impunes, coroada pela concretização da segunda circumnavegação do globo. Drake entrou na lenda dos mais famosos navegadores e o seu feito depressa correu mundo. A partir desse dia, o capitão Francisco, tal como depressa ficou conhecido, tornou-se na personificação do inimigo de Espanha e do novo poder marítimo inglês.

Logo no início da década de 1580 agrava-se consideravelmente a tensão entre Inglaterra e Espanha sobre a
exclusividade da navegação e comércio transatlânticos. Para os súbditos de Filipe II, colocava-se mais do que nunca a necessidade de interromper o quase centenário fluxo clandestino de pilotos portugueses, acolhidos pelas potências rivais de Espanha. Opoinião partilhada por personagens poderosas, como o Presidente do Conselho de Índias (em Madrid), autoridade máxima do órgão administrativo das colónias espanholas no continente americano, a denunciar este problema como mais um argumento justificativo da anexação de Portugal. Esta posição encontra-se bem reflectida numa carta ao rei: "Todos estos pilotos que van en estas armadas de ingleses y franceses son portugueses, que para esto y otras cien mil cosas convendría ser Vuestra Magestad Rey y Señor de aquellas tierras".

Esta preocupação pareceu justificar-se da maneira mais alarmante apenas duas semanas mais tarde. Na corte espanhola circulou o rumor de que o próprio Drake teria estado em Lisboa para o planeamento da sua viagem de regresso pelas Índias Orientais, desde o Pacífico até ao Atlântico Norte: "Hase entendido que Francisco Draque, antes que partiese de Inglaterra para la Mar del Sur, estuvo algunos días en Lisboa, procurando entender la navegación que traen los portugueses desde la India Oriental acá, con designio a lo que ahora se entiende de si se pusiese en la Mar del Sur traer aquel viaje, pareciendo cosa muy dificultosa volver a desembocar por el estrecho y tambien el volver por Tierra Firme,… y que de este viaje llevó una carta. Parece sería de mucha importancia haber un treslado de ella, y así parece que convendría que Vuestra Magestad mandase a Zayas escriviese luego a don Cristóval de Mora la procurase y enviase a Vuestra Magestad, pues quedaría algun treslado de ella, y don Cristóval podría procurar de entender con qué persona o personas trató este corsario, para que por ellas pudiese haber mejor recaudo en este negocio". Filipe II anotou apressadamente à margem que se avisasse o seu secretário "para que luego escriba" e desse início às buscas (Madrid, 31 de Agosto de 1579). Um ano depois, logo após o regresso triunfal de Drake da sua circum-navegação, o embaixador espanhol em Londres escrevia ao rei que "el Draques afirma que si no fuera por dos pilotos portugueses que tomó en un navío que robó y hechó a fondo en la costa del Brasil a la yda no pudiera haver echo el viage. Ha dado a la Reyna un diario de todo lo que le ha sucedido en los tres años y una gran carta" (carta de D. Bernardino de Mendoza a Filipe II, Londres, 16 de Outubro de 1580).

Contudo, num aparente paradoxo, a invasão espanhola de Portugal acabou por provocar a fuga de mais pilotos e marinheiros experimentados, que muita falta iriam fazer às armadas de Filipe II nos anos vindouros. Disso mesmo era informada em 1582 a Sereníssima República de Veneza pelo seu embaixador na corte espanhola, a propósito dos preparativos da esquadra do Marquês de Santa Cruz para a conquista dos Açores: "Stava l’armata ben fornita de ogni cosa, ecceto che di marinari, che si haveva gran mancamento massime delli pratici in quella navigatione, che sono li portughesi, li quali per non andar contro le forze di Don Antonio s’erano partiti, et nascosti, et quelli pochi, che per forza sono imbarcati, li seguono quase in catene, ci sono riputati cosi mal affetti verso il servitio del rè, che non se ne possono fidare". Iam faltando marinheiros, os quais evitavam assim bater-se contra D. António, Prior do Crato, seu conterrâneo. Nove dias depois, quando da partida da armada de Lisboa, verifica-se a fuga de outro grupo de mais de 60 marinheiros portugueses, recorrendo a um estratagema pouco ortodoxo, mas aparentemente eficaz: "Doppo ch’imbarcò il Marchese Santa Croce general nell’armata fugirono dalla sua Nave cap.a forse 60 marinari portughesi, et cosi fecero dell’altri in buon numero usando percio diversi ingani fino travistirsi con habbiti da donne et uscir con esse, ch’erano introdotte in li nave per occasione di visitar i mariti et i parenti". Por trás deste hilariante episódio de marinheiros foragidos disfarçados de mulher, escondia-se uma verdadeira dor de cabeça para a administração militar espanhola na tentativa de compôs as suas forças navais. Este incidente obrigou as autoridades espanholas, nos três dias seguintes, a embarcar à força os poucos candidatos ao serviço que ainda se encontravam em Lisboa.

Em Portugal, assiste-se desde o início da década de 1580 a uma crescente falta de marinheiros e artilheiros para a Europa septentrional e para a Ásia. Dois motivos principais ditaram este movimento, ambos provocados pela conturbada situação política, social e financeira portuguesa no final da década de 1570: em primeiro lugar, o forte sentimento de animosidade em relação a Castela logo após a anexação de Portugal, o que provocou a recusa de muitos em servir o monarca estrangeiro. Por outro lado, a procura dos seus serviços, que nunca deixou de se fazer sentir nas nações rivais das monarquias ibéricas desde a primeira metade do século, aumentada agora proporcionalmente pelo incremento das suas frotas comerciais e das oportunidades flagrantes que o comércio à escala continental e mundial oferecia, e que claramente ultrapassava as possibilidades do exclusivismo e monopólio de Espanha e Portugal. Isto numa altura em que não só o comércio marítimo ibérico era alvo de ataques quase rotineiros por parte dos seus rivais do Norte da Europa, como se concretizavam no plano prático os projectos de estabelecimentos comerciais rivais, por exemplo, no Novo Mundo.

Muitos marinheiros recusaram-se prestar serviço também por razões de ordem prática, tal como a garantia do seu pagamento. O problema do atraso nas remunerações estimulava as deserções e as faltas ao trabalho a bordo dos navios e armadas do rei: "De marineros ha de aver mucha necessidad porque los que havia en esta çiudad van todos en las naos de las Indias y los que ay en los puertos de donde son los que he tomado que son Avero Oporto y Villa de Conde no han de querer salir a servir hasta saber el sueldo que han de tirar y para que Vuestra Magestad sea bien servido y con la brevedad que este negocio requiere convendrá que se les den buenas pagas y raciones y si esto no se haze con ellos Vuestra Magestad no lo sera porque todos aborreçen el yr a servir en armadas... hasta agora no ha avido ninguno que quiera servir antes se an huydo muchos en entendiendo que se azia Armada…". Reivindicações compreensíveis, mas surpreendentes, dada a reconhecida dureza do sistema militar espanhol para com os súbditos do reino anexado. O poder naval espanhol parava para ouvir as exigências dos marinheiros portugueses, antes de partir em armada pelo Atlântico fora.

Como medida preventiva, é emitido alvará em nome do rei datado de Lisboa, 20 de Dezembro de 1597, estipulando uma pena de 2 anos de degredo às pessoas que, tendo recebido soldo após alistamento ao serviço da Coroa, se ausentassem do mesmo. Uma hemorragia que, contudo, nunca chegou a ser devidamente estancada. Passada a época de glória das navegações ibéricas, assistia-se gradualmente a uma sucessão em larga escala no domínio dos mares. Anunciava-se a decadência do secular poder naval, mas para qualquer dos opositores ainda eram necessários pilotos, pois os destinos almejados não tinham mudado.

Guerra no Além-Mar

Não data de hoje o interesse pelo controle e exploração dos recursos em África. História de séculos já esquecidos, mas cujos episódios merecem ser recordados. Particularmente entre nós, povo colonizador com pretensões a um império que chegou a ter uma cor bem original, no malogrado Mapa Cor-de-Rosa. Para todos os que se interessam por aquilo que foi a nossa História além-Mar, recomendo leitura do Companhia de Moçambique, blog muito informativo com cheiro a capim e a pólvora. Páginas que se escreveram pelas mãos de muitos marítimos, feitores da nossa histórica Expansão .

sábado, setembro 20, 2003

À beira-mar plantados (I)

O litoral de Marrocos, tal como já escrevemos há dois "posts" atrás, foi pontuado nos séculos XV e XVI de vilas amuralhadas pelos conquistadores e construtores portugueses. Erguidas à beira-mar para defender os ocupantes, são hoje uma das principais atracções turísticas.

Uma conclusão não deixa de ressaltar, depois de lidas milhares de páginas saídas das penas de muitos historiadores que descreveram a história lusa em Marrocos, tal como em tantos pontos do império português de outrora: se outras ideias houvera, alguém poderia ter composto um autêntico roteiro das praias do império, de Marrocos às Filipinas.

Aqui fica a ideia, de que me lembro tantas vezes, mas que penso poderia ser escrito hoje em dia. Porque ainda não estão totalmente desvirtuadas. Estes destinos idílicos, de que já nos esquecemos que fomos os primeiros europeus a desfrutar, vendem-se hoje sem qualquer outra informação adicional para além das notórias delícias do sol e da praia (juntamente com as incontornáveis diversões nocturnas). "Des-identificámo-nos", se assim se pode dizer, destas nossas velhas conhecidas praias. Verdadeiros paraísos avidamente procurados pelas suas águas quentes, fauna exótica abundante e clima ameno, contam-se, ente outras, as ilhas atlânticas de Fernão de Noronha (Brasil), Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Santa Helena (onde morreu Napoleão), bem como as ilhas do Índico, Seychelles, Maldivas e Diego Garcia (de onde partiam os B-52 para bombardear o Afeganistão e o Iraque...). Afinal, estes são destinos onde muitos portugueses vaguearam, entre uma e outra missão de descoberta e conquista, por entre naufrágios, combates e outros acidentes do mar. Se hoje ainda são idílicos, imagine-se numa época onde não existia gasolina, óleo de motor, plástico, borracha (pneus) ou imensos esgotos urbanos. Sobre isto e não só, prometo mais em próximas actualizações. Só para marítimos...

P.S.
A propósito de viagens culturais, aconselho leitura do Diário de Bordo, divertido e instrutivo. Digressões geográficas bem-dispostas, desde a visita às bizarras relíquias em Budapeste ao Museu do navio Viking algures na Noruega. Uma marítima de se lhe tirar o chapéu. Sigam a bússola...

Senhores do Mar (I)

O mar não se domina, apenas se deixa conhecer. Mas quem melhor o conhece, vai mais longe. Eis alguns marítimos portugueses que se notabilizaram no decorrer de Quinhentos.

Em Portugal, segundo um testemunho, "la más de la gente de este Reino que biben a diez y a mas leguas del mar, su principal officio es seguir el mar para todas las partes donde se navega y se llevan y traen mercancias sin lo qual no pueden vivir". Esta declaração, dirigida por um oficial galego a D. Filipe I (Filipe II de Espanha) em 1589, bem podia ter sido escrita no início do século. Nessa época, como resultado das navegações pioneiras das Descobertas, a imagem dos pilotos marítimos portugueses era sobejamente reconhecida e alvo de respeito em toda a Europa Ocidental. Esta admiração foi expressa pelos seus contemporâneos das mais diversas maneiras: a Utopia, do humanista inglês Thomas Moore foi apenas a mais conhecida. Claro que nem todos os pilotos que se apresentavam nas cortes estrangeiras eram verdadeiramente competentes, mas sim charlatães ou espiões. Com alguma ironia, Diogo de Gouveia comentava então que qualquer português que aparecesse com um astrolábio e um mapa era objecto de proposta de trabalho.

Naturalmente, muitas potências rivais cobiçaram a competência destes pilotos e esforçaram-se através de aliciamentos sistemáticos por atraí-los, na tentativa de beneficiar dos seus serviços para os acessos marítimos ao Atlântico Sul, Índico e Extremo Oriente, cujo saber técnico da navegação era ciosamente resguardado da cupidez dos monarcas estrangeiros pela Casa da Índia em Lisboa. Porém, o apreço em que eram tidos atraíu também muitos falsos pretendentes dispostos a beneficiar das regalias oferecidas sobretudo, numa primeira fase, pelos monarcas franceses e, a partir de meados do século, pela Inglaterra.

As notícias sobre o envolvimento de pilotos portugueses nas navegações estrangeiras são muitas, e já no primeiro quartel do séc. XVI dá-se a mais famosa de entre todas. Fernão de Magalhães fez história em 1519, ao largar da Andaluzia em busca das ilhas das Especiarias (Molucas) em nome dos reis castelhanos. A bordo, muitos portugueses, entre os quais o piloto João Carvalho. Magalhães acaba morto numa recôndita ilha das Filipinas, mas a sua nau regressa a Espanha, completando a primeira circumnavegação do mundo. Entre os vários portugueses da sua armada, encontra-se Estêvão Gomes, natural do Porto, piloto da nau Santo António. Abandonou a armada com a sua nau antes de terminada a passagem do Estreito. Anos mais tarde, participa noutra expedição espanhola, no reconhecimento da costa norte-americana.

Justamente a partir desta época, decerto confirmando a mestria e o saber demonstrados, multiplicam-se as notícias sobre armadas estrangeiras com pilotos portugueses. Alguns destes personagens, pagos a peso de ouro, participaram ao lado de Magalhães na sua aventuara global, enquanto muitos outros apenas possuíam em comum o facto de pertencerem à mesma geração que irá conduzir tantas expedições europeias a águas restritas. Pilotos mercenários como Estêvão Gomes (companheiro de Magalhães), ao qual se juntou Afonso da Costa, dirigem a partir de Castela uma carta ao rei D. João III de Portugal, propondo-se alcançar o ouro do Peru "muito mais parte pela costa do Brasyll que pela navegasam per onde os castelhanos vam", ou seja, tentanto vender segredos de navegação detidos pelos mesmos monarcas castelhanos que pagaram a Magalhães para contornar a navegação portuguesa (carta de Fernão Álvares de Andrade ao Conde da Castanheira, Évora, 6 de Abril de 1535). Contudo, Estêvão Gomes, tal como Diogo Ribeiro, mestre de cartografia na Casa da Contratação em Sevilha (semelhante à Casa da Índia, em Lisboa) e outros portugueses no estrangeiro, foram oficialmente banidos do reino e declarados "pessoas corru(p)tas e danadas e não se deve deles esperar justo neem verdadeiro juizo" (minuta de carta enviada aos juristas portugueses na discussão sobre a demarcação geográfica das ilhas Molucas, Évora, 25 de Março de 1524). Mas Estêvão Gomes reaparece em 1529, tomando parte numa expedição enviada pela Coroa de Espanha a descobrir uma ligação marítima do Atlântico ao Pacífico entre o norte da Florida e a Terra dos Bacalhaus (Terra Nova, hoje no Canadá). Partiu da Galiza com um galeão armado por financiamentos privados, passou por Cuba e pela Florida, reconhecendo o litoral leste norte-americano, sem ter descoberto a passagem procurada. Certamente, uma questão de dinheiro e alguma fama.

O êxodo foi constante. Pedro Serpa deverá ter sido um dos primeiros a partir e, em 1525, encontrava-se servindo a burguesia normanda. Serviço efémero, acabando enforcado no Brasil, por ordem de Martim Afonso de Sousa que castigava, com a pena máxima, a deserção do piloto.
Outro nome, o capitão e piloto Estêvão Dias, o "Brigas", é recorrente em vários testemunhos da época. Em Maio ou Junho de 1526 partiu de Honfleur, na Normandia, a armada de 3 naus comandada pelos irmãos Verrazano, com destino às Molucas pelo Estreito de Magalhães. As tempestades do Atlântico Sul impediram-nos de efectuar esta travessia e uma das naus, com o piloto "Brigas", prefere dobrar o Cabo da Esperança e tentar atingir o arquipélago das especiarias pelo Índico. No entanto, após terem chegado à ilha de Sumatra, iniciam a travessia de volta ao Atlântico, passando pelas Maldivas, e acabam por naufragar em Madagáscar. De entre os poucos haveres que conseguiram salvar da nau, contavam-se uma carta de marear "muito boa e muito bem feita" e um Regimento de navegação português.
Passado pouco mais de uma década, ainda foi possível recolher informação da baía onde naufragara outro navio da mesma armada, pilotado por um português de alcunha o "Rosado", acrescentando que, quanto a Brigas, fora arrastada fora de rota devido fortes ventos, indo parar a Diu (Norte da Índia) em 1529. O sultão Bahadur, que então reinava nessa região, denominada Cambaia, "a todos os franceses dela fez mouros, que eram oitenta e dous, os quais despois, sendo elches, levou no ano de 1533 por bombardeiros na guerra que teve c’o rei dos Mogores, onde todos morreram, sem um só ficar vivo". A história foi contada pelos 36 sobreviventes franceses feitos cativos pelo rei de Cambaia, em carta, não datada, enviada por aqueles ao Governador da Índia, pedindo a sua liberdade. Em vão.

Mas a saga dos pilotos portugueses continuou, recheada de perigos e desastres e presenteada por vezes com recompensas régias. A partir de 1529, com a viagem bem sucedida dos irmãos bretões Parmentier às Molucas pelo Índico, a bordo de navios do armador e corsário normando Jean Ango, ficara provado que era possível aos franceses navegar até ao Índico e regressar. Questões de outra ordem, porém, impediram o prosseguimento das navegações francesas. A guerra com Espanha obrigou à concentração no Atlântico, o que acabou por beneficiar apenas os corsários e piratas normandos e bretões.

Na década de 1530, há notícia de pilotos portugueses em locais onde não se esperaria encontrá-los, na actual Guatemala. Ainda antes da conquista do Peru, Pedro de Alvarado, o braço direito de Fernando Cortés no México, escreve a Carlos V em 1532 uma carta a anunciar a aparição na pequena corte de Guatemala, havia dois anos, de dois pilotos portugueses. Esses dois pilotos chegaram junto do conquistador espanhol e puseram-se ao seu dispôr para com ele irem conquistar aquele «Império Pirú», o qual nunca Pizarro (afirma a carta) conseguiria tomar porque achava-se em Panamá sem meios para isso. Enquanto que ele, Alvarado, com uma frota sob a direcção dos dois pilotos portugueses poderia muito bem, não só conquistar o Peru, o que era simplicíssimo, mas uma vez conquistando o Império dos Incas eles dirigi-lo-iam facilmente até às Molucas para apoderar-se igualmente destas ilhas. Nesse ano de 1532, parte da mesma cidade de Guatemala para a conquista do Peru, a acompanhar um outro conquistador espanhol famoso, Sebastián de Belalcázar (que habitava então na Nicarágua), um piloto chamado João Fernandes. Este piloto é um mistério, visto que é a única personagem importante, o único piloto conhecido a quem faz referência Garcilaso de la Vega, o autor da história do descobrimento do Peru, dizendo dele, justamente que "no se sabia dónde era". Este João Fernandes assiste à conquista de Tumbes e de Cajamarca, em companhia de Pizarro, e regressa rapidamente a Guatemala. Homem de grande iniciativa, vêmo-lo em breve voltar ao Peru, desta vez como piloto da expedição organizada pelo conquistador Alvarado que em 1534 desembarca na costa do Equador actual, para subirem os expedicionários até Quito, tendo passado da região tropical tórrida a uma região glacial, morrendo de fome e de frio muito deles.
No mesmo ano de 1532, encontrava-se na Flandres um português foragido que se apresentou como piloto, tendo sido muito bem acolhido. D. João de Mascarenhas avisou de imediato D. João III do sucedido, informando o rei da ocorrência de muitos casos similares que "cá no estrangeiro vem muitos destes portugueses que ainda que preguem marinharia falsa como bulas, com serem portugueses lhes dão crédito neste mister de pilotagem". Ainda durante o reinado de D. João III, o piloto Pero Fernandes foi afastado do envolvimento em nova viagem às Índias Orientais patrocinada por Jean Ango, devido à acção do representante da Coroa portuguesa Pero Mascarenhas. No entanto, é patente a dívida dos monarcas franceses para com os navegantes portugueses estrangeirados, seus predecessores e seus guias.

Filipe II de Espanha, enquanto rei-consorte de Inglaterra (1553-1554), terá sido um dos responsáveis pela tomada de consciência e vontade de inovação relativamente às navegações oceânicas inglesas, precisamente a partir de meados do século. O primeiro resultado prático desta sua preocupação foi o envio para a Península Ibérica em 1558 do piloto escocês Stephen Borough, para as famosas aulas de navegação e cosmografia fornecidas pela Casa de Contratación, em Sevilha. No seu regresso, Borough trouxe consigo o manual espanhol corrente, Arte de Navegar (1551), de Martín Cortés, que foi imediatamente traduzido para o inglês como The Arte of Navigation (London, 1561), por Richard Eden. O próprio Borough, juntamente com o sábio John Dee, seriam os tutores do navegador e corsário Sir Martin Frobisher em Inglaterra, um dos pioneiros das expedições marítimas em busca da mítica Passagem do Noroeste (no extremo Norte do continente americano) para atingir a Índia e a China. Na realidade, durante a primeira metade do século XVI os pilotos escoceses gozaram de uma vantagem significativa em relação aos seus vizinhos ingleses, baseada na experiência e reputação superiores nas longas navegações oceânicas. Em Portugal, o nome de Antão Corso, "escorses", é dado a conhecer a D. João III pelo capitão da fortaleza portuguesa de Ternate em 1544 por ocasião da chegada de navios espanhóis às Molucas, como tendo realizado previamente a viagem àquelas ilhas. Na tripulação encontrava-se, uma vez mais, o elemento português: um marinheiro natural de Vila Franca, o qual prontamente desertou da armada para se entregar ao capitão da ilha de Ternate, ao qual prestou informações sobre o piloto escocês.

Um piloto particularmente bem sucedido neste período foi Simão Fernandes. Natural da ilha Terceira, casou em Inglaterra e aí serviu a Coroa inglesa nas décadas de 1570 e 1580. Já no reinado de D. Sebastião, em 1576, acumulava os cargos de piloto-mor e mestre do galeão da Coroa inglesa Tiger, de c.200 toneladas, onde também viajava uma das figuras históricas da marinha inglesa: Sir Richard Grenville, célebre capitão que morreu após um combate épico nos Açores entre o seu galeão, o famosíssimo Revenge, e uma armada luso-espanhola de mais de 20 navios. Em 1580, Simão Fernandes, terá realizado uma viagem de reconhecimento à Nova Inglaterra na América do Norte, enviado pelo navegador Sir Humphrey Gilbert. Cinco anos depois, encontrava-se a navegar nas Caraíbas, mestre a bordo do Lion, navio-almirante da expedição de Grenville à efémera colónia inglesa na costa norte-americana (ilha de Roanoke, na actual Carolina do Norte).
Mas Simão Fernandes não se limitou sequer à condução de navios e expedições da Raínha: foi mais longe, participando como um dos promotores na organização da expedição de 1587 à mesma colónia inglesa para garantir o seu financiamento. Foi considerado um dos homens de confiança de Sir Francis Walsingham, secretário de Estado da raínha Isabel I. Alvo da animosidade de Sir Richard Grenville durante a expedição de 1585, contou no entanto com o apoio do mercador-colonizador Ralph Lane junto de Sir Walter Raleigh, capitão e escritor muito próximo da Raínha. Porém, tanto quanto se sabe, nem um nem outro voltou a viajar com Grenville.
E, como seria de esperar, havia possivelmente outro português a bordo da expedição: mais do que incómoda, esta situação tornara-se perigosa numa altura em que se abriam hostilidades no mar entre Espanha e Inglaterra, confirmando os piores presságios. Iniciava-se a época das grandes armadas, em confronto pelo domínio dos mares.

Diário de Leitura

Fontes:

Archivo General de Simancas (Valladolid), secção Estado e Guerra Antigua

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa), secção Corpo Cronológico

Bibliografia:

La Batalla del Mar Océano: Corpus Documental de las Hostilidades entre España e Inglaterra (1568-1604), (Madrid, 1988-1993) 3 vols.

As Gavetas da Torre do Tombo, ed. A. da Silva Rego, Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1960-1977. 12 vols.

Mollat, Michel, "Passages Français dans l’Océan Indien au temps de François Ier", separata de Studia, Lisboa, 11 (Janeiro de 1963).

Quinn, David Beers (ed.), The Roanoke Voyages, 1584-1590, London: The Hakluyt Society, 1955. 2 vols.

Wright, Irene A. (ed.), Documents concerning English Voyages to the Spanish Main, 1569-1580, London, The Hakluyt Society, Second Series, vol. LXXI, 1932

terça-feira, setembro 16, 2003

Novos Mares

A Internet já tem a sua História. Ou de como se navega hoje em dia sem jangadas de pedra, segundo o capitão Hugo. A não perder por todos nós marinheiros de águas de fibras ópticas.

sábado, setembro 13, 2003

Em Busca do Desejado no Algarve d'Além-Mar

A expansão portuguesa no Norte de África foi animada desde o início pelo ideal religioso mas também por razões práticas, como primeira linha de defesa para a navegação no Atlântico e ainda como entreposto capaz de alimentar o reino carenciado em trigo. Ao longo de mais de cem anos, diversos vultos importantes da nossa História desembarcaram nas areias marroquinas, desde o Infante D. Henrique, D. Afonso V, vários Duques de Bragança, Camões, D. António, Prior do Crato e, mais famoso de entre todos, D. Sebastião. A intervenção pessoal de dois monarcas delimita o período de ouro da presença portuguesa em Marrocos: tudo começou na conquista de Ceuta (1415) com D. João I, o vencedor de Aljubarrota, e muito acabou na derrota de Alcácer-Quibir com D. Sebastião, o Desejado (1578).

Sob o signo da Cruz: Triunfo e Tragédia nas Areias de Marrocos

Com o aval da Igreja e dos Papas, durante todo séc. XV e até ao início do séc. XVI (1513), os reis portugueses enviaram várias grandes armadas para conquistar os lugares marítimos estratégicos. É em resultado de uma destas campanhas, em 1437, que o infante D. Fernando (Infante Santo) é feito prisioneiro, após tentativa falhada de tomar Tânger pelo infante D. Henrique, seu irmão. Aquele ficou refém dos muçulmanos, sendo depois levado para Fez, onde acabou por morrer nas masmorras em condições deploráveis, 6 anos mais tarde. Mais tarde, Alcácer-Ceguer (1458), Arzila e Tânger (1471) acabaram por ser tomadas pelos portugueses.

Em simultâneo, neste período a costa marroquina foi sendo pontuada de poderosas fortalezas, verdadeiros alicerces do império. Os arredores dessas fortalezas tornaram-se para várias gerações de soldados e oficiais, homens simples e fidalgos, no principal campo de treino militar onde recebiam o seu baptismo de fogo antes de servirem na Índia. Vários grandes cercos movidos por inumeráveis exércitos marroquinos puseram à prova a capacidade de resistência das praças portuguesas, mas apenas caíu a de Agadir em 1541, sendo a mais isolada, bem a sul das restantes. Fruto destes combates intensos escreveram-se muitas páginas heróicas nas crónicas e memórias históricas, descrevendo as difíceis situações experimentadas no interior das muralhas assediadas, assim como a vida quotidiana, marcada pelo comércio e diplomacia com os diversos chefes locais que dividiam entre si o poder naquela região.

As poucas bases navais fora do domínio português serviram de refúgio a piratas e corsários, em Salé por exemplo, que enxamearam as costas portuguesas do Algarve ao Minho, atacando também as ilhas, durante mais de 200 anos, até ao séc. XVIII, perseguindo a navegação portuguesa e as populações do litoral, saqueando e fazendo cativos para serem resgatados a peso de ouro.

Em 1550, depois de prolongado debate com várias personalidades da Igreja, políticos e militares D. João III ordena o abandono das fortalezas de Safim, Arzila e Alcácer-Ceguer, sob o efeito de uma crise económica que não pára de aumentar.

Com D. Sebastião, a grande derrota de Alcácer-Quibir (1578) deixa o reino órfão, cujo destino foi selado pelo avô, seu sucessor, o idoso Cardeal-
Rei D. Henrique que, durante o seu breve reinado se decidiu pelo favorecimento do pretendente mais forte, Filipe II de Espanha, afastando os seus mais sérios candidatos ao trono, a duquesa D. Catarina de Bragança e D. António, Prior do Crato. Seguiram-se 60 anos de governo dos reis espanhóis em Portugal, findos os quais a principal fortaleza, Ceuta, permaneceu nas mãos de Espanha por decisão da própria guarnição.
O declínio da política africana continuou: Tânger foi oferecida à Coroa inglesa em dote pelo casamento de D. Catarina de Bragança com o rei Carlos em 1662 e pouco mais de cem anos depois, deu-se o abandono de Mazagão, última fortaleza cuja população foi transferida por ordem do rei em 1769 para o Brasil.

Bem se vê que a História de Portugal se jogou por várias vezes no reino muçulmano mais ocidental de África. Os laços históricos continuam visíveis, depois de séculos de confronto, comércio e navegação. Nos nossos dias, a bandeira de Ceuta ainda continua a ser o brasão de Portugal, embora com menos uma torre na bordadura para manter a diferença heráldica em relação ao original português. Nos nomes das ruas da cidade, muitos portugueses são evocados.

D. Sebastião: de Desejado a Desaparecido e "o naufrágio de um tamanho reino"

Em 1554, no dia de São Sebastião nasce o rei baptizado com o mesmo nome, apelidado à nascença de "Desejado", pois era o único herdeiro directo do trono português, sobre o qual repousavam as esperanças de todo um povo. Aclamado rei com pouco mais de três anos de idade, após uma sucessão fatal de mortes na família real (os príncipes seus pais e o rei D. João III, seu avô), foi desde cedo alvo de fortes pressões políticas opostas, ora de Espanha, ora da poderosa Ordem dos Jesuítas, enquanto o reino era regido ora pela sua tia-avó D. Catarina de Habsburgo ou pelo seu tio-avô, Cardeal D. Henrique.

Aos 14 anos de idade, completados em 1568, foi proclamada a sua maioridade. Desde esta data, o ambiente de intriga fez com que se afastasse abertamente dum e doutro, aderindo ao partido dos "validos", jovens nobres da sua idade, temerários e exaltados, sempre prontos a seguir as suas determinações. A educação do novo rei esteve a cargo do velho aio, D. Aleixo de Meneses, recebendo por mestres o humanista jesuíta Luís Gonçalves da Câmara e o matemático Pedro Nunes. Desinteressou-se dos estudos, manteve-se apaixonado praticante de desportos violentos, como a caça de voltaria e de monte.

De saúde precária, D. Sebastião demonstrou na sua juventude duas grandes paixões: a guerra e o zelo religioso. Passou à História como Defensor da Cristandade, mas a realidade é que o seu reinado decorreu sob o signo da decadência. D. Sebastião iniciou o seu reinado em crise e assim o terminou. A sua época anunciou o final do século de ouro português. Depois das prósperas navegações de Expansão e Descobrimento, Portugal mergulhou numa grave crise financeira, o comércio tornou-se difícil e a vida económica, outrora próspera, ficou estrangulada. No Oriente, a situação política e militar degradava-se rapidamente. Momento difícil, sendo o próprio país crescentemente assediado por vagas de ataques por parte de corsários Protestantes franceses e ingleses.

Neste período, a Coroa adoptou novas opções imperiais, procurando descentralizar a administração no Oriente e abandonando o monopólio do comércio. No Brasil e em África prosseguiam as missões de colonização e a procura de metais preciosos. Foram tomadas algumas medidas enérgicas com vista à protecção das frotas mercantes portuguesas que, vindas do Brasil, Mina, ou Guiné, eram atacadas pela pirataria anglo-francesa; com o mesmo intuito, procedeu-se à fortificação da costa alentejana e do litoral algarvio, erguendo-se, nesta altura, uma rede de fortalezas traçadas pelos melhores arquitectos da época. No que se refere à política externa D. Sebastião manifestou continuado desprezo pelas iniciativas diplomáticas que visavam encontrar-lhe uma esposa (Margarida de Valois, Isabel Clara de Habsburgo, Maximiliana da Baviera, etc.), pelo que não teve descendência.

Os seus aios e preceptores incutiram-lhe um espírito religioso e militar muito determinado. De carácter influenciável e entusiasta, dividia o seu tempo pelas caçadas, pelos exercícios religiosos e pela leitura de livros de história, principalmente da história portuguesa. Equitação, torneios a cavalo e a pé. O seu grande prazer era desafiar o perigo e procurar a aventura. No Inverno ia para Sintra, no Verão para Salvaterra e Almeirim e em dias de mau tempo agradava-lhe embarcar nas galés saindo da barra de Lisboa para contemplar, da popa dos navios, o mar embravecido. O seu celibato, que desesperava todos à sua volta, devia-se aparentemente a um forte espírito religioso que lhe fazia ver o ideal da vida humana na castidade espiritual. Recusou por isso muitos projetos matrimoniais que lhe eram regularmente propostos pelas principais Coroas europeias.
No entanto, desde 1572, a passagem a Marrocos tornara-se um objectivo explícito do rei, apoiado pela jovem nobreza do reino, envolvido de uma forte componente ideológica de Cruzada. O rei terá mesmo pensado em passar à Índia, tendo sido prontamente dissuadido pelos seus conselheiros mais próximos. Mas em Agosto de 1574 embarcou secretamente para África, sem aviso prévio. Houve grande preocupação quando se soube do seu desaparecimento. Finalmente apareceu uma carta régia, em que participava a sua expedição, nomeando regente do reino na sua ausência o cardeal D. Henrique. As pessoas mais autorizadas pediram repetidamente o regresso do rei, mas D. Sebastião só regressou porque nem em Ceuta, nem em Tânger, encontrou ocasião de combater.

O momento é oportuno para a vontade do rei: obtém a aprovação do Papa para esta guerra e, aproveitando o clima de guerra entre os príncipes mouros, decide apoiar a facção de Muley Mohamede, exilado em Portugal. Voltaram a ouvir-se opiniões contrárias às do rei, tendo como fundamento o perigo de a sucessão recair em Filipe de Espanha na hipótese possível da morte do rei em Marrocos, suplicando-lhe que ao menos aguardasse o tempo suficiente para deixar príncipe herdeiro jurado antes de sua partida. O Cardeal D. Henrique recusa-se a ficar com a regência do reino para tentar demovê-lo. Mas D. Sebastião não quer ouvir conselhos. Intransigente na sua vontade de voltar a África, não parou até ter reunido apoios suficientes.

A decisão controversa e fatal de uma grande campanha em África foi tomada num clima de exaltação nacional, num fervor guerreiro e religioso, em meio a uma decadência generalizada: um autor contemporâneo escreveu: ...passe (Vossa Alteza) a África, e tome-a, e triunfe dela, e torne com despojo a descansar em Lisboa. Outro poema publicado em Portugal no ano seguinte ao da batalha de Lepanto, a maior vitória naval das potências católicas contra a armada turca no Mediterrâneo, celebrava em verso heróico a glória da expansão da fé. Em 1573, o Papa Gregório XIII ofereceu a D. Sebastião uma seta de ouro, simbolizando a arma que tirou a vida ao santo mártir S. Sebastião. A imagem da seta encontra-se ainda hoje visível no brasão municipal da vila de Almeirim, onde foi oficialmente recebida. Assim legitimada pela Igreja de Roma, esta intervenção militar numa escala sem precedentes tornava-se numa guerra considerada justa e vantajosa em serviço de Deus e honra da monarquia, para atalhar o avanço do inimigo Turco. Em 1577, D. Sebastião ordenou a reocupação da fortaleza de Arzila.

Recrutaram-se no reino milhares de homens sem experiência nem treino adequado maioritariamente indisciplinado. As poucas tropas veteranas vieram da Alemanha, Flandres e Espanha. Já o núcleo de veteranos e nobres equipava-se com um luxo completamente impróprio para uma expedição militar, transportando criados, tendas e bagagens enormes. Nas palavras de um historiador contemporâneo, os portugueses não pensavam que hiam a pelejar mas a hum vencimento certo, triumpho e ostentação de seu poder e estado e levando comsiguo suas riquezas. Contou-se mais tarde em Lisboa que no final do combate se encontraram dezenas de guitarras portuguesas dispersas pelo campo de batalha.
O rei trouxe consigo a espada e escudo de D. Afonso Henriques que se guardavam no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, para acompanhá-lo em África, embora, ironicamente, as tenha deixado a bordo de um navio em Arzila.

A imensa armada que em 1578 transportou o exército a Arzila, no Norte de África, reunia entre 600 a 1.300 navios de todos os tipos e portes, provenientes dos portos nacionais e do estrangeiro. Desembarcando em Arzila, o rei e os deus homens dirigiram-se por terra a Larache, primeiro grande objectivo a conquistar. Próximo de Alcácer-Quibir, a 4 de Agosto de 1578, os exércitos adversários encontraram-se e defrontaram-se sob um calor tórrido. Os portugueses, com uma estratégia mal definida, lançaram ataques descoordenados embora com muito ímpeto. O rei embrenhou-se numa das últimas cargas de cavalaria e desapareceu por entre as hostes infindáveis de mouros. Se a princípio a batalha pareceu quase ganha, o que dela resultou foi uma estrondosa derrota que abalou a monarquia portuguesa. A conquista final de Marrocos significou a perda da vida do rei na grande campanha de 1578, arrastando consigo para a morte perto de 8.000 homens, entre os quais se contava parte considerável da nobreza.
Em meados de Setembro, contavavam-se perto de 9.000 prisioneiros. Sobre a derrota, alguns testemunhos culpavam os conselheiros do rei que não tinham talvez aquela prática da guerra que era preciso de que é causa aquela infeliz resolução de ir para os braços e casas dos inimigos sem considerar em tantos inconvenientes quantos razoavelmente se deviam considerar.

Mais uma vez, os contactos entre portugueses e marroquinos foram preciosos para salvar vários prisioneiros. D. António, Prior do Crato, filho bastardo de D. João III, depois de aprisionado pelas tropas de Al-Mansor, beneficiou dos seus contactos com membros da influente comunidade judaica em Tânger, tendo sido um dos primeiros cativos a ser libertado, mediante o pagamento do seu resgate por um judeu. O resgate foi pago um judeu de Fez, em reconhecimento de favores prestados por D. António quando esteve por governador de Tânger, em 1574 e muitos outros cativos da batalha ficaram aposentados na judiaria de Fez, tendo os judeus locais financiado milhares de cruzados de crédito a uma comissão de fidalgos cativos, os quais vieram a Portugal para obter o resgate de quase uma centena de nobres que tinham sido aprisionados.
De imediato, nasceu a célebre polémica relativa ao desaparecimento de D. Sebastião, sobre se escapara vivo da batalha, ou se morrera nela combatendo. Na realidade, com esta imensa acção imprudente, o rei dera início a uma grave crise política sobre a sucessão do reino. O suposto corpo de D. Sebastião, assim como os prisioneiros mais importantes, foi resgatado por Filipe II rei de Espanha por somas consideráveis, embora o corpo do rei só tenha sido trazido de Ceuta em 1582 e enterrado na igreja do Mosteiro dos Jerónimos em Belém, já reconhecido como seu legítimo sucessor, sob o nome de D. Filipe I de Portugal.

Mas, ao desaparecer D. Sebastião (morto, diziam uns, escondido, garantiam outros) nasce uma das figuras míticas da nossa História. Para a História ficou uma trágica aventura que um dia o rei "menino", com apenas 24 anos, quis por força tornar realidade. Apesar do desastre de 1578, a imagem monarca ganhou uma aura mística e o país não voltaria ser o mesmo, esperando desde então pelo seu messias lusitano em dia de nevoeiro.

A jangada soçobrou, meteu muita água e ficou sem timoneiro, mas não afundou. Por pouco...

P.S.
Viagem no Tempo

Fiquem os leitores a saber que para melhor se ambientarem a este tema, poderão informar-se aqui sobre um inovador percurso turístico-cultural a Marrocos no início do próximo mês de Novembro, numa excursão que irá visitar os locais de tantos acontecimentos acima descritos. Brevemente partirão à redescoberta da nossa história para lá do reino, mergulhando num ambiente exótico e uma cultura milenar que encantou tantos portugueses da Era dos Descobrimentos.


Diário de Leitura:

José de Castro, D. Sebastião e D. Henrique (Lisboa, 1942).

Luciano Ribeiro (ed.), Colectânea de documentos acerca de D. Sebastião, separata de Studia, Lisboa, n.º 5 (Janeiro 1960)

Francisco de Sales Mascarenhas Loureiro (ed.), Jornada del-rei Dom Sebastião a África. Crónica de Dom Henrique (Lourenço Marques, 1570 (reed., Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1978)

J. M. de Queiroz Veloso, D. Sebastião, 1554-1578, Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1935.

quarta-feira, setembro 10, 2003

Mimos e Memórias de um Vice-Rei na Índia

Verão de 1546. Combate-se em muitas frentes por toda a Índia, mas em nenhum lugar tanto como no Norte, em Diu, à entrada do Golfo de Cambaia. Pela segunda vez desde 1538, um poderoso exército guzarate submete a fortaleza portuguesa a um cerco impiedoso que irá fazer história. Os assaltos sucedem-se, com dezenas, centenas de mortos de cada vez que os adversários se encontram cara a cara. Passam-se 5 meses e tanto sitiados como sitiantes não ultrapassam por muito tempo as espessas muralhas, cada vez mais arruinadas, que os separavam. Com extrema dificuldade, pequenos navios à vela lá vão socorrendo de vez em quando os portugueses com algumas munições, pão e homens, mas os combates continuavam. Desgastados, feridos, sem comida e com os canhões silenciados por falta de pólvora, os defensores não irão suportar as investidas por muito mais tempo. Mas o mar que lambe os baluartes desta fortaleza marítima traz até eles a força que já ia faltando. Finalmente, no dia 11 de Novembro, um militar navegador e erudito homem de ciência, D. João de Castro, alcança uma vitória decisiva, desfazendo assim o delicado equílibrio bélico a favor dos portugueses. Em reconhecimento dos seus serviços, e D. João de Castro é nomeado Vice-Rei do Estado português da Índia, por entre grandes celebrações festivas com que é recebido em Goa, ao ponto de reconstituírem numa fortaleza reduzida à escala as principais acções que resultaram na vitória final. Dias felizes para muitos, mas na sua mente recordaria ainda as palavras de D. Álvaro, seu filho, comunicando-lhe a morte do irmão, D. Fernando, durante o terrível cerco: "Meu irmão, que Deus haja, achei morto; é certo que Vossa Mercê perdeu um filho e eu um irmão para muito sentir, mas nós havemos de morrer e o manjar da Guerra são homens e os melhores" (carta de D. Álvaro de Castro a D. João de Castro, Diu, 27 de Agosto de 1546). Recordaria decerto a dor e a alegria de ter cumprido honradamente o seu dever, enquanto perdia alguém precioso. Assim era para muitos a vida na Índia naqueles meados do séc. XVI.

Durante o seu mandato (cumprido entre 1546 e 1548), o célebre D. João de Castro redigiu e recebeu vasta correspondência. Parte desta papelada dirigia-se aos seus dois filhos, D. Fernando e D. Álvaro. Nestas cartas, que chegaram aos nossos dias, as agitadas penas deitaram rios de tinta sobre os mais diversos assuntos. Para além da perspectiva puramente familiar, estão reflectidas as experiências de vida de cada um, os seus verdadeiros sentimentos e opiniões a respeito de personalidades e eventos contemporâneos. Tal sinceridade é rara nos documentos históricos que se conhecem para vultos desta importância. Certa carta sobreviveu, pelos caprichos da História, para nos lembrar um mau momento, mas que fica como exemplo de como as grandes personalidades são mesmo feitas de carne e osso, glórias àparte e se expressam como todos nós.

Escrevendo ao seu filho ainda durante o cerco de Diu, D. João de Castro aconselha severas medidas de represália contra os prisioneiros inimigos (a fazer lembrar os tempos de Afonso de Albuquerque, o Terribil) e desespera com a exasperante ineficácia e cobardia de certos capitães portugueses a quem se confiavam missões de reforço à guarnição da fortaleza sitiada. As palavras são de uma extrema dureza, inigualáveis quanto à expressão do descontentamento: "D. Álvaro, filho: …Parece-me muito bem mandardes degolar quantos Guzarates e Mouros se tomam, e eu outro tanto faço cá. …E estou para me enforcar dessas caravelas lá não serem, e merda para elas e para os que vão dentro, e para Gomes Vidal, porque são homens de merda que não sabem navegar senão para tomarem portos e comerem pão fresco e rabãos e saladas, e andarem às putas; e dizei-o assim ao capitão e a Vasco da Cunha e a Fr. Paulo, porque já não hei-de falar senão desta maneira; e merda para mestre Diogo e para quantos apóstolos vêm de Portugal, porque eu sirvo muito bem El-Rei nosso senhor, e eles são grandes hipócritas, que querem haver bispados para darem renda a seus filhos e terem mancebas gordas" (D. João de Castro a D. Álvaro de Castro, Baçaim, 14 de Outubro de 1546)
Sentimentos de uma personalidade austera, confirmados aliás nas palavras do cronista da Índia Diogo do Couto, o qual narra que no ano seguinte, "O Governador [D. João de Castro] depois de despedir seu filho D. Álvaro de Castro, ficou dando ordem, e despacho a algumas cousas. E, como além de ser muito Cavaleiro, era fonfarrão, e roncador, sabendo que andava gente de Cambaya naquela Cidade, que forçado havia de escrever lá novas, deitou fama que havia de ir até à Cidade de Amadabá, e tomar ElRei às mãos, e que o havia de espetar, e assar vivo. E mandou fazer na ferraria (que ele muitas vezes visitava) uns espetos de ferro mui grandes, dizendo «que eram pera assar ElRei, e os seus Capitães»." (Diogo do Couto, Década 6.ª). Nada mais, nada menos.

Já as cartas posteriores, sobretudo após o final do cerco são bem mais pacíficas, lembrando e confirmando com o seu agora filho único o envio de guloseimas, autênticos privilégios, fossem doces de "açúcar rosado", jarras de mel e caixas de marmelada ou mesmo umas apetecíveis perdizes engaioladas e "algumas amostras de vinho" (cartas de D. João de Castro a D. Álvaro de Castro, 1 e 3 de Novembro e 26 de Dezembro de 1546). A natural preocupação paterna pela saúde de D. Álvaro, convalescente de uma doença algo prolongada, é expressada nos seus conselhos para que "vos deixeis estar comendo e bebendo e levando muito boa vida".
Apesar das críticas ao seu feitio por vezes irascível, as reais capacidades de D. João de Castro eram plenamente reconhecidas pelos seus pares. Não foi excepção à regra um dos filhos de Vasco da Gama, D. Estêvão, tendo escrito ao rei: "Bem sey que pera sondar barras e debuxar saberá muy bem fazer", (carta a D. João III, Goa, 25 de Outubro de 1541).

Na verdade, basta um relance às suas "Taboas", isto é, roteiros de navegação elaborados a bordo de viagens no Oceano Índico, para admirarmos a qualidade das suas observações, dignas do seu mestre, o grande matemático Pedro Nunes.
As suas várias obras merecem uma leitura. Homem culto e polivalente, foi um dos pioneiros do experimentalismo científico em Portugal, levando à prática inúmeras observações. Da astronomia nautical à hidrografia e navegação, os seus estudos não impediram as suas prestações militares e navais. Enquanto navegava ao serviço da Coroa, D. João de Castro fazia-se acompanhar de cadernos onde tomava os seus apontamentos, ilustrados também por si, hábito que incutiu ao seu filho D. Álvaro.
O seu período de glória como Governador da Índia é sobejamente conhecido através das várias páginas de obras que o celebrizaram. Alguns episódios tornaram-se quase lendários. De facto, não é qualquer pessoa que empenha as próprias barbas para financiar a reedificação de uma fortaleza (Diu) após um monumental cerco de vários meses, ganhando o respeito de toda a população de Goa; e talvez não tenha sido puro acaso que tenha expirado nos braços de S. Francisco Xavier, apóstolo do Oriente. Episódios verídicos na carreira de um homem notável. Uma vida plena, que bem se pode resumir nas suas próprias linhas: na dedicatória do seu "Roteiro de Goa a Diu" (1538), Castro descreve as suas andanças marítimas: "...ora pelejando com os ventos, ora defendendo-me dos mares, às vezes correndo as costas, e outras caminhando por grandes e espantosos perigos".
Castro, homem prático e consciente da importância decisiva do poder naval para Portugal, não deixou de lançar um aviso pertinente:

"...a todos seja notório que os muros da Índia sam esta armada de Vossa Alteza" (carta de D. João de Castro, Diu, 1546)

A defesa da Índia deveria jogar-se preferencialmente no mar. Uma lógica que reconhecia neste elemento a superioridade efectiva e não tanto em terra, onde eramos gradualmente inferiores em número e organização, quase que resumindo as iniciativas militares a acções defensivas.
Ironicamente, se tivesse vivido mais alguns anos teria visto a corrupção e decadência, que já antes corroíam os alicerces do Estado da Índia, alastrar a partir justamente da segunda metade do séc. XVI, demarcando-se definitivamente da época de ouro portuguesa no Índico.

Um grande marítimo português, portanto, daqueles que fazem flutuar esta jangada de pedra...

P.S. Existe um outro D. João de Castro debaixo de água, nos Açores: recomendo visita ao rico banco submarino do mesmo nome. Homenagem merecida em paisagem magnífica. O autêntico D. João de Castro jaz no convento de São Domingos, em Benfica - local outrora ermo e isolado - na antiga capela dos Castros.


Diário de Leitura:

Cartas Trocadas entre D. João de Castro e os Filhos (1546-1548), introdução e notas de Luís de Albuquerque, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses - Ministério da Educação, 1989

Diogo do Couto, Décadas, selecção, prefácio e notas de António Baião, Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1947

Obras Completas de D. João de Castro, Coimbra: Academia Internacional de Cultura Portuguesa, 1968-1981; 4 vols.

Vitorino Magalhães Godinho, Mito e Mercadoria: Utopia e Prática de Navegar, sécs. XIII-XVIII (Lisboa, 1990)

terça-feira, setembro 09, 2003

Marés Vivas

Brevemente, nesta praia junto de si:

- à conversa com D. João de Castro: a espada e a pena de um Vice-Rei da Índia sem papas na língua
- desastre de navegação em Tróia (de Portugal) deixa espanhóis atolados sem ouro e sem navio
- expedição a Marrocos no rasto de D. Sebastião e outros portugueses mal-afortunados

Façamos fluir a História despretensiosamente...

domingo, setembro 07, 2003

A Admirável Jangada de Pedra

A fortuna busca-se desde tempos imemoriais no mar mas, vezes sem conta, encontra-se a tragédia. Nós, portugueses, sabemos disso. Ou melhor, soubemos. Apenas pontos solitários no vasto oceano onde o infortúnio os depôs, muitos antepassados nossos penaram na gesta da expansão. A imensa estrada transoceânica que atingia a Índia e a China foi feita de esqueletos de navios e homens. Hoje, a pimenta, as naus, o "império", tudo ficou para trás e desapareceu. Fechou-se o ciclo e até ajudámos, à  nossa maneira, ao nascimento de uma nova nação, Timor Loro-Sae. Mas a herança da jangada de pedra é pesada, de muitas maneiras. A continuada dependência do exterior para manter este país a funcionar: aqui nada se produz, tudo se consome. Uma cultura partilhada com outros povos que já mal falam português. Hábitos houve que não mais abandonaram o nosso código genético: emigrantes e mercadores saí­dos de um país de lavradores e pescadores mantêm acesa nos nossos dias a chama da alma portuguesa, quais marí­timos navegando as auto-estradas de oportunidades sempre renovadas. Uma vitalidade admirável, em meio a uma alegre decadência generalizada. Dizem que nos adaptamos bem a tudo, menos à nossa própria História. É verdade. O português esquece-se facilmente que, depois de dividir ao meio o mundo por descobrir com os nossos rivais ibéricos, já estivemos nas melhores praias do mundo (com os melhores "spots"), já construímos (em grande parte) a maior potência sul-americana cujo nome deriva do pau-brasil, já demos de beber o chá aos ingleses, já fomos os primeiros europeus a atingir as regiões então inacessíveis do Tibete e do Japão, ensinámos a navegar meia Europa e demos cartas (do mundo inteiro) na ciência do desenho cartográfico. Fomos a primeira potência naval europeia, à nossa maneira. Outros tantos navegadores, portugueses ou não, nunca mais deixaram as nossas águas desde o dia em que meteram água; ainda hoje lá se encontram, no fundo do mar à espera daquele que irá desenterrar a sua história. Porque ainda há histórias que ficaram por lembrar. É o que me proponho contar aqui, enquanto a jangada flutuar. Assim haja arte, tempo e maré...