segunda-feira, outubro 27, 2003

Os Escritores e o Mar (I)

A experiência do contacto do Homem com o Mar e os mistérios das suas profundezas despertou desde sempre o fascínio na alma dos escritores. Boa parte dos relatos, sobretudo de ficção e depoimentos em primeira pessoa, investe na emoção. Ficção e realidade misturam-se com facilidade na história de vida daqueles que escreveram sobre as aventuras do Homem na misteriosa imensidão azul dos oceanos do mundo.

Género essencialmente anglo-americano, a literatura marí­tima tem os seus cultores e movimenta toda uma indústria editorial, fornecendo relatos de ficção e não-ficção sobre batalhas navais, relatos pessoais de almirantes e marinheiros, piratas e corsários, viagens de exploração, desastres e naufragios. Assunto não falta e o género tem os seus mestres. São escritores que fizeram dos mares uma fonte rica e inesgotável de temas para as suas obras.

O Naufrágio do Essex

A veracidade das narrativas confunde-se, por vezes, com as experiências de vida dos próprios autores. Em 1820, após o ataque inesperado de um cachalote enfurecido, o baleeiro «Essex» afundou-se num instante algures no Pacífico Norte. Nunca se imaginara que uma baleia pudesse reagir aos pescadores que a perseguiam. O que se seguiu ao naufrágio foi uma longa provação pelas águas do Pacífico: amontoados em três botes, os marinheiros navegaram durante três meses, experimentando os horrores da inanição e da desidratação, da doença, da loucura e da morte, chegando à práctica do canibalismo.

Owen Chase, primeiro-imediato e um dos oito sobreviventes do «Essex», navio que serviu de modelo para o «Pequod», em Moby Dick, escreveu um minucioso relato de 128 páginas intitulado Narratives of the Wreck of the Whale-Ship Essex (Narrativa do Naufrágio do Baleeiro Essex). O relato, escrito na primeira pessoa, dramático e de força maior porque feito com a autoridade de quem viveu os acontecimentos, foi a principal fonte de inspiração de Herman Melville (ver mais abaixo), que o leu quando tinha por volta de 20 anos. Esta obra passou a ser o mais importante documento sobre a história real do navio baleeiro.

Conhecem-se outros relatos de sobreviventes deste naufrágio, mas nenhum tão importante e detalhado quanto o de Owen Chase. No entanto, por volta de 1960, encontrou-se um livro de anotações guardado no sótão de uma residência em Penn Yan, na cidade de Nova York. Em 1980, o manuscrito chegou às mãos de um especialista da caça à baleia, o qual, depois de muita investigação, descobriu ter sido seu autor o camareiro do «Essex», Thomas Nickerson. Nickerson tinha embarcado com apenas 14 anos e encontrava-se ao leme do navio quando do ataque da baleia. Sobrevivente do ataque, voltou a Nantucket, tornando-se dono de uma estalagem. Aos 71 anos, instado por um dos fregueses aos quais narrava a tragédia do «Essex», escreveu a história que, por vias tortuosas, foi parar àquele sótão esquecido na povoação de Penn Yan, para vir a público quase 200 anos depois dos acontecimentos narrados.

Foi juntando os dados das narrativas de Chase e Nickerson e de estudos posteriores, além dos próprios, que Nathaniel Philbrick (ele próprio campeão de regatas) reuniu material para escrever In the Heart of the Sea (No Coração do Mar, Europa-América, 2003, vencedor do prémio "National Book Awards" nos Estados Unidos em 2000, categoria Não-Ficção). Nele é retratada a história do «Essex» - a sua construção, as viagens anteriores, a formação da sua tripulação para a última viagem, as relações humanas a bordo e, sobretudo, da maneira como sobreviveram ao naufrágio 8 dos 21 pescadores embarcados. O livro relata o dia-a-dia dos sobreviventes do naufrágio do navio baleeiro, forçados a recorrer ao canibalismo e a sofrer os piores padecimentos em pleno alto mar.

A Grande Baleia Branca

A caça à baleia branca permanece uma metáfora poderosa, realizada de forma exemplar.
De entre os navios ficcionais mais famosos de toda a literatura, o «Pequod», baleeiro sob as ordens do implacável capitão Ahab é, sem dúvida, a estrela.

O norte-americano Herman Melville inspirou-se numa história verídica (o afundamento de um baleeiro atacado por um grande cachalote) para escrever Moby Dick (1851), a sua obra-prima e um dos grandes tí­tulos da literatura universal.
Originalmente intitulado The Whale (A Baleia), foi publicado em três volumes e a edição inglesa foi censurada, com o corte de trechos susceptíveis de ofender sensibilidades morais e políticas.

Melville, ele próprio baleeiro quando jovem, participou numa campanha de caça à baleia no Pacífico, da qual acabaria por desertar já nas paradisí­acas Ilhas Marquesas, vivendo vários meses com o povo taipi. Agregou-se depois à tripulação de uma baleeira australiana, foi preso como amotinado, navegou pelos mares do Sul, alistou-se num navio de guerra do seu país e regressou aos Estados Unidos. Deu então "baixa" na marinha e ingressou na literatura, de onde não mais saiu .

Em Moby Dick (1851), Melville transformou o mar num reino absurdo e sem lógica, que desafia a compreensão humana. O autor construíu a história atormentada de uma luta formidável entre uma gigantesca baleia branca (Moby Dick) e um homem obcecado, o veterano capitão Ahab, cuja perna tinha sido decepada num encontro anterior com o cetáceo. A narrativa descreve longamente a perseguição infindável de Moby Dick e a apoteose do encontro final entre o animal e o homem que o que o persegue. Mas o sucesso literário foi efémero e o escritor aposentou-se na vida real como agente da Alfândega no Porto de Nova York.

Esta obsessiva jornada tornou-se numa das mais fantásticas aventuras literárias marí­timas e deu lugar a vários filmes para o cinema (e séries televisivas), um dos quais realizado por John Huston.
Moby Dick, por seu turno, inspirou dezenas de outros autores.

P.S.

Para quem não acredita em histórias de navios afundados por baleias, aqui fica uma notícia de acontecimento semelhante ocorrido, curiosamente, ainda este último Verão .


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