terça-feira, dezembro 30, 2003

Um Náufrago e a sua Obra: a História Misteriosa do Palácio da Água

"O «Taman Sari» é o mais estranho dos vestígios de Portugal na cidade de Jojakarta, Indonésia. Construído por um arquitecto português que ali naufragou em 1755, vai agora ser recuperado com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.

Quando o turista português que vai à Indonésia em busca de vestígios de Portugal visita, na cidade de Jojakarta, o «Taman Sari» («Palácio da Água»), a primeira impressão é de estranheza e frustração. O que tem perante os seus olhos é um barroco oriental complicado, em que serpenteiam e se entrelaçam símbolos islâmicos e hindus: as «árvores da vida», as enormes asas da Garuda, a ave mítica, e as carrancas ameaçadoras dos «espanta-demónios». O visitante perguntar-se-á: o que é que este delírio arquitectónico tem a ver com Portugal? Por estranho e inesperado que pareça, tem".

Naufrágio e Obra
"A história do «Palácio da Água» é curiosa, misteriosa e sensual. No ano de 1755, reinava o sultão Hamengku Buwono I, fundador da dinastia ainda hoje reinante em Jojakarta. Constam as crónicas locais que as gentes do sultão encontraram, perdido numa praia no sul da cidade, um sobrevivente de um navio português naufragado. Desconhece-se o nome do náufrago, mas veio a verificar-se que era versado em arquitectura. O certo é que o sultão o chamou para colaborar no projecto do palácio de Verão que queria construir.
A construção do palácio-jardim decorreu até 1765. Satisfeito com os bons serviços prestados, o sultão concedeu ao arquitecto português o título nobiliárquico de «Demang». A partir de então, o nosso herói anónimo foi conhecido pela designação de «Demang Tuguis», sendo esta segunda palavra uma nítida corruptela da palavra «português».
O «Taman Sari» era um vastíssimo conjunto de arquitectura paisagística, com uma área superior a dez hectares. Como escreve o arquitecto João Campos, "a fabulosa extensão do programa edificado só é concebível (face à evidência do que resta e a grandiosidade que se imagina facilmente) pela existência de um extraordinário projecto urbanístico, desenvolvido para a representação de uma faustosa corte". O empreendimento contava com um lagos, piscinas, canais, pavilhões, residências para convidados, aposentos e recantos do mais variado tipo e uma mesquita a que se acedia por um percurso subaquático."

História de um Palácio Luso-Oriental
"Em tempos modernos, o primeiro português a interessar-se pelo que resta do «Taman Sari» foi, já em 1970, o diplomata António Pinto da França, no mais valioso documento até hoje publicado sobre a presença portuguesa naquelas paragens: a obra «Portuguese Influence in Indonesia».
Segundo João Campos, a parte do «Palácio da Água» que vai ser objecto de recuperação (o complexo das piscinas), revela «uma arquitectura de matriz europeia, seja pelo "cartesianismo" iluminista que aparentam, seja pela escala dos elementos definidores dos volumes construídos, para além de a própria concepção do conjunto das piscinas se filiar numa tradição portuguesa em palácios e quintas de recreio».

Para a arquitecta indonésia Laretna Adisatki, especialista em património construído, a influência portuguesa no «Taman Sari» terá, sobretudo, a ver com o plano geral do conjunto, geométrico e simétrico, e com os aspectos tecnológicos da construção, como, por exemplo, os materiais utilizados nas paredes dos edifícios.
No «Palácio da Água, os aposentos privados do sultão localozavam-se numa torre construída na área de lazer dos banhos, constituída por três piscinas; a torre é a parte da edificação em que será mais nitidamente detectável a influência portuguesa. Sob o olhar (no mínimo cobiçoso) do sultão, banhavam-se nas piscinas as concubinas do harém, cujas brincadeiras aquáticas ele acompanhava das janelas dos seus aposentos, no alto da torre, para escolher aquela que, nessa noite, partilharia o leito real. Em termos modernos, o local seria o que se chama um «spa», de grandes dimensões e com características peculiares...
Daqui se conclui que os portugueses não construíam apenas fortalezas, igrejas e feitorias nos lugares por onde iam passando ou onde se iam fixando. Sem objectivos bélicos, religiosos ou comerciais, o «Taman Sari» é uma obra de arquitectura puramente civil, produto da concepção modelar de um sofisticado espaço de lazer, digno de um potentado oriental do século XVIII.

Em 1867, um tremor de terra danificou seriamente o «Palácio da Água», que entrou em rápida decadência. Os edifícios ruíram, o grande lago artificial desapareceu, os canais, as fontes e os repuxos secaram, foram-se as árvores frondosas e as flores perfumadas. Os espaços arruinados foram aproveitados para a construção de casas modestas, onde se instalaram famílias dos servidores dos sultões. Houve, é certo, alguns restauros em décadas recentes, mas a parte que mais nos interessa, a nós, compatriotas do «Demang Tuguis», necessita urgentemente de recuperação.
Foi isso que, por iniciativa da antiga e dinâmica embaixadora de Portugal em Jacarta, Ana Gomes, o actual sultão de Jakarta solicitou à Fundação Gulbenkian. O sultão Hamengku Buwono é o décimo do mesmo nome; homem moderno e desempoeirado, a sua forte personalidade impô-lo na vida política da Indonésia, a ponto de, em 1998, ter sido reconhecido oficialmente pelo Governo central como governador da «Região Especial de Jojakarta». Detém, assim, uma dupla legitimidade, dinástica e política."

Recuperação do Património Distante
"A recuperação da parte «portuguesa» do «Taman Sari» encontra-se já em fase de projecto, uma vez mais cometido pela Fundação Gulbenkian ao arquitecto João Campos. Os problemas técnicos são complicados; acima de tudo, haverá que a estabilizar, pois em virtude da frequência de inundações no local, está em permanente risco de derrocada. E haverá também que eliminar remendos modernos, bem-intencionados mas descaracterizadores.
Termino esta história com uma extrapolação poética, imaginando que o turista português, ao revisitar o «Palácio da Água» já recuperado, ouve a voz de alguém, no antigo serrado dos sultões de Jojakarta, entoando uma cantiga de amor luso-indonésia, como esta que António Pinto da França regista no seu livro:
"Io buska mienja amada
Mienja noiba, mienja amor
Io buska até tudo banda
Isti corsan teeng tantu dor...".

Texto de José Blanco (Administrador da Fundação Calouste Gulbenkian), publicado na Revista do «Expresso» (10 de Maio de 2003), pp. 24-27.

Algumas informações complementares aqui.

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