terça-feira, novembro 16, 2004

Comérdia Trágica ou (mais) uma "biografia" de D. Sebastião...

Ainda estou a tentar recobrar os sentidos depois das sinopses que li de um livro do brasileiro Aydano Roriz sobre D. Sebastião, mas aqui vai:

Alguns arrebatadores excertos deste livro circulam na "Net": "um dos aspectos mais curiosos deste trabalho é a elaboração das falas dos diversos personagens. Por exemplo o médico Amato Lusitano veio de muito longe para estudar o neto de D. João III e disse: «O principezinho nasceu efectivamente com pénis e com uma pequena vagina. Ambos menores que o normal. A bolsa escrotal é murcha como uma bexiga vazia e os testículos, de tão atrofiados, assemelham-se a duas sementinhas". Fantástico, não? E esta autêntica pérola: " Cardeal D. Henrique aparece a falar neste tom: «Tu pareces louca ó Catarina. Se não me respeitas como filho do Venturoso e irmão do teu marido, respeita-me ao menos como príncipe da Igreja. Achas que eu seria capaz de atentar contra a vida do senhor meu rei? Tu vai pentear macacos, ó Catarina! És louca, mulher.» Por sua vez Filipe de Espanha afirma para D. Sebastião, depois de este dizer que a sua mãe é Portugal: «Não sejas injurioso, rapaz. A tua mãe era uma mulher maravilhosa. Extraordinária mesmo.» Por fim as palavras de D. Sebastião para Filipe de Espanha sobre as suas reais intenções em África: «Temos conseguido poucos proveitos na Índia e no Brasil. E Marrocos, mesmo ao pé da porta, tem muito trigo, gado, açúcar e anil.» Por esta amostragem se faz a aproximação ao ponto talvez de maior interesse deste livro: a capacidade do seu autor se colocar na pele dos personagens, desenvolvendo os diálogos com muita vivacidade e a verosimilhança possível, pois (é claro) não estava lá ninguém para registar quando os episódios aconteceram. Nesse aspecto este texto é um achado.", isto de acordo com o Notícias da Amadora. Oh, meus amigos...
Honestamente, não sei o que dizer.

Vejam-se ainda estes exemplos antológicos da arte de não-dizer-nada: "trata-se de uma narrativa de 280 páginas a partir de uma investigação pessoal e do recurso à consulta de variada bibliografia. Sendo uma «história» de Dom Sebastião, torna-se também uma «história» do seu tempo pois incorpora muitos outros personagens e não se reduz à vida do «Desejado»" (ainda segundo o Notícias da Amadora). E não é tudo: parece que o autor é mesmo bom, pois "O livro nasceu de um amplo trabalho de pesquisa histórica de Aydano Roriz, que visitou vários dos lugares nele retratados (Portugal, Bélgica, Espanha) e consultou centenas de sites da Internet e livros do século XVII em português arcaico". É-me difícil conter o riso...

Mal-fadada hora aquela em que a Editora Pergaminho decidiu publicar em Portugal uma obra desnecessária e de teor aberrante. Porque não reeditar a grande obra de Queiroz Veloso, caramba? Evitavam queimar-se e, com eles, um bom bocado da nossa História...

quarta-feira, abril 14, 2004

Navegações do "Maritimo"

Novidades
O capitão deste "blog" justifica a hibernação deliberada deste espaço com a sua colaboração noutros projectos marítimos (e nas suas próprias investigações históricas). Para saber mais, nada melhor do que ler o próximo número da revista «Vega», a qual (como já terão lido algures) é a primeira revista portuguesa de grande informação dedicada ao mar.



O artigo em questão (assim como o que sairá na próxima semana nadesaguliers_diving1.jpg revista «Al-Madan») trata do mergulho em navios afundados e recuperações subaquáticas na época da Expansão, um dos temas prestes a tratar em livro, já prometido há vários meses, mas sucessivamente atrasado devido a divergências com a antiga editora. Para já fica a notícia sobre os artigos que posteriormente estarão acessíveis aqui, neste recanto marítimo virtual.
Sugestão
Em Londres, o Imperial War Museum disponibiliza "online" a história de um trágico episódio marítimo integrado na exposição "Survival at Sea: stories of the Merchant Navy in the Second World War" sobre o afundamento em pleno Atlântico do cargueiro britânico SS «Anglo Saxon» por um navio corsário alemão.

Neste ataque, o «Anglo Saxon» perdeu a maior parte da tripulação de 41 homens. Apenas 7 tripulantes escaparam a bordo do batel de serviço medindo pouco menos de 5,5 metros. Este batel, designado tecnicamente um "jolly boat", está agora exposto no Museu e é o centro de uma pequena história trágico-marítima do último grande conflito mundial. Uma odisseia pouco conhecida que durou 70 dias à deriva, levando os 2 únicos sobreviventes à salvação numa ilha das Bahamas por sorte, improviso e muita força de vontade.

domingo, abril 04, 2004

Descoberta do HMS «Agamemnon»

HMS Agamemnon, 1781. Reconstituição 3D por P.R. Dobson (2004)


O Navio Favorito de Lord Nelson

Em 1793, pouco após a declaração de guerra da França revolucionária à Grã-Bretanha, o jovem capitão da "Royal Navy" Horatio Nelson chegou ao comando do HMS «Agamemnon», reunindo-se à Esquadra do Mediterrâneo liderada por Lord Hood onde serviu até 1796, ano em que se transferiu para o HMS «Captain». Neste período da carreira do futuro almirante, o «Agamemnon» cumpriu missões de escolta e bloqueio, entrando também em combate. Foi neste período decisivo da sua intensa carreira naval que Nelson aperfeiçou não só as suas aptidões de combate, mas também demonstrou o seu imenso carisma e aptidão de liderança. Foi também a bordo do «Agamemnon» que Nelson conheceu a sua mulher, Lady Hamilton, em Nápoles. Mais tarde, Nelson recordar-se-ia da sua aprendizagem e acção nestes três anos, elegendo o «Agamemnon» como seu navio predilecto.

Lord Horation Nelson.
Por Lemuel Francis Abbott, 1800 (National Maritime Museum Greenwich).

A história detalhada do navio foi investigada por Anthony N. Deane, em Nelson’s Favourite: HMS Agamemnon at War, 1781-1809 (1996).

Recentemente, uma equipa internacional de caçadores de tesouros anunciou ter descoberto o local de naufrágio favorito do célebre Almirante Horatio Nelson, o navio de 64 canhões HMS «Agamemnon», perdido ao largo da costa do Uruguai em 1809, ao qual estão ligados momentos históricos da vida do Almirante.

A bordo deste navio, Nelson seduziu a sua mulher, Lady Hamilton, e perdeu um olho em combate. Enterrado e protegido nos bancos de areia entre a costa uruguaia e brasileira durante quase 200 anos, o posicionamento dos vestígios terá sido estabelecida por uma equipa liderada pelo norte-americano Crayton Fenn após a descoberta, 10 anos antes, de um canhão de ferro que se comprovou pertencer ao «Agamemnon», ostentando alguns detalhes identificativos, como a insígnia real do rei Jorge III de Inglaterra.


História e Naufrágio de um Navio de Guerra

HMS Agamemnon capitaneado por Horatio Nelson em operações contra a marinha de Napoleão, c. 1795. Nicholas Pocock.


O HMS Agamemnon é um dos mais famosos navios perdidos da "Royal Navy", classificado como navio de terceira linha ("third rate"),
Lançado à água em 1781, tomou parte em 11 batalhas navais entre os anos de 1781 e 1807, assinalando-se em particular na batalha vitoriosa do Almirante Sir George Rodney sobre uma esquadra francesa das ilhas Saintes (Antilhas francesas) em 1782, no bloqueio de Toulon e captura dos portos de Bastia e Calvi (na Córsega, onde Nelson perdeu o olho direito) em 1794, estando presente em grandes vitórias de Nelson, como a batalha de Copenhaga (1801) e Trafalgar (1805). Depois de servir no bloqueio de Cádiz, o «Agamemnon» terminou a sua carreira nas Índias Ocidentais, onde tomou parte em vários confrontos contra unidades da marinha francesa e navios corsários.

ACombate do navio francês Ça-Ira contra o HMS Agamemnon (primeiro a partir da esquerda) e outros dois navios britânicos na bataille de Cabo Noli, 1795 (wikipedia).

A sua última missão realizou-se no ano de 1808, integrando a esquadra da Royal Navy destacada para patrulhamento no Atlântico Sul, tendo por base o Rio de Janeiro. Durante esta missão, o navio sofreu estragos significativos no casco durante um temporal e acabou por encalhar num recife não cartografado próximo da ilha de Gorriti, a norte da baía de Maldonado (Punta del Este, Uruguai), tendo-se salvo toda a tripulação. O capitão do navio ainda conseguiu recuperar a maior parte da artilharia e outros artefactos nos dois dias seguintes ao naufrágio.

Descoberto o local, iniciaram-se pesquisas arqueológicas subaquáticas pela equipa do MARE (Marine Archaeological Research) lideradas pelo polémico inglês Mensun Bound. Foram já recuperados vários artefactos do naufrágio, entre os quais um canhão de ferro (um dos 13 que perfaziam parte do armamento) e um selo de chumbo alegadamente ostentando iniciais de Nelson e adata de 1787.

Curiosamente, já foi anunciada a intenção de remover os restos do navio pelo milionário uruguaio Hector Bado, que irá financiar grande parte da operação. Bado está associado à ambiciosa operação de recuperação do «Graf Spee», cruzador alemão da II Guerra Mundial afundado ao largo de Montevideo. O Uruguai parece ter-se tornado cada vez mais na Meca dos caçadores de tesouros.

Notícias do "Scotsman".

Aviso à Navegação

O Centro de Arqueologia de Almada convida todos os seus sócios, colaboradores, amigos e público em geral a assistir à sessão de apresentação pública do n.º 12 da revista «Al-Madan», que terá lugar no próximo dia 23 de Abril (sexta-feira), às 18 horas, no auditório da Ordem dos Arquitectos (Travessa Carvalho, n.º 23, Lisboa - ao pé do Mercado da Ribeira).

Neste volume, destaca-se um dossiê sobre "Património e Ordenamento do Território", que incide em particular sobre os Planos Directores Municipais de "1ª geração" e as metodologias de elaboração destes instrumentos de gestão a nível local. Disponibilizam-se ainda vários outros artigos e textos de opinião, crónicas, notas de actualidade e noticiário diverso, comentários a eventos e novidades editoriais, propostas de roteiros de lazer e informações sobre recursos "online". O evento integrará uma conferência a proferir pelo Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, onde este desenvolverá as posições expressas em entrevista inserida no dossiê.

Informações: Tel. / Fax 212 766 975; e-mail: c.arqueo.alm@mail.telepac.pt

Deixo aos leitores do "Marítimo" um índice parcial deste próximo número, no qual se inclui uma modesta contribuição do capitão deste "blogue". Assim, poderão ler os seguintes artigos:

Actualidade
"Escavações no Adro da Igreja Matriz do Cadaval", por Guilherme Cardoso, João Ludgero Gonçalves e Vanda Benisse
"Escavações Arqueológicas na Villa Romana de Caparide", por Lurdes Nieuwendam, João Cabral, Guilherme Cardoso e Eurico de Sepúlveda
"Sondagens na Olaria do Morraçal da Ajuda", por Guilherme Cardoso e Severino Rodrigues
"Museu de Arte e Arqueologia do Vale do Côa: um projecto excepcional", por Fernando Real
"Desperdícios Domésticos (séculos XV-XVIII)", por Salete da Ponte e Judite Miranda
"Povoado Pré-Histórico de Leceia: valorização e divulgação", por Ana Luísa Duarte
"Aprovada Lei-Quadro dos Museus", por Ana Luísa Duarte
"Conservação de Espólio Náutico e Subaquático", por Ana Luísa Duarte
"XV Congresso da UISPP", por Luiz Oosterbeek

Crónicas
"Paleontologia: Dinossáurio Superstar", por Carlos Marques da Silva
"Pré-História antiga: Trapalhada e Caça ao Fóssil no Estudo da Evolução Humana", por Luís Raposo
"Arqueologia clássica: Viriato Ressuscitado", por Amílcar Guerra
"Arqueologia portuguesa: Ser Arqueólogo, Hoje e Amanhã: sobre a necessidade de avaliação das perspectivas profissionais", por António Manuel Silva
"Arqueologia e Património: O Ordenamento do Território Como Parte Integrante do Património Cultural," por Victor Mestre

Arqueologia
"A «Pesca de Naufrágios»- II: história e arqueologia do mergulho em navios afundados na Época Moderna", por João Pedro Vaz (yours truly, com versão mais desenvolvida aqui e a versão definitiva aqui)
"Indícios de um Campo Romano na Cava de Viriato?", por Vasco Gil Mantas
"O Balneário Pré-Romano de Braga", por Francisco Sande Lemos, José Manuel Freitas Leite, Ana Bettencourt e Marta Azevedo
"Contributo Para o Conhecimento do Povoamento Rural Romano no Concelho de Borba: a villa da Cerca", por Ana Ribeiro
"Intervenção Arqueológica e Estudo Antropológico da Necrópole no Castelo de Viana do Alentejo", por Paula Tavares, Ana Luísa Santos, Ana Gonçalves, Ricardo Silva, Félix Teichner e Ana Cristina Pais

sexta-feira, abril 02, 2004

Andô Hiroshige



O Elemento Aquático Japonês
Andô Hiroshige (1797-1858), pintor e 080.jpgimpressor japonês, foi um dos grandes especialistas na pintura e gravura de paisagens. Considerado um dos mestres da arte gráfica japonesa, autor das séries de estampas "Cinquenta e Três Estágios de Tôkaido" (1833) ,obra particularmente famosa,foi acima de tudo um virtuoso desenhador. Muitos dos seus trabalhos abordam temas e paisagens contemporâneos de uma rara harmonia e beleza efémera, incluindo algumas maravilhosas gravuras de paisagens marítimas e fluviais.



Aqui, tal como aqui 087.jpgencontram-se galerias de gravuras invulgarmente belas dedicadas aos peixes.
"Ukiyo-e" (imagens do mundo flutuante)
O estilo "Ukiyo-e" foi desenvolvido na cidade de Edo (actual Tóquio) durante a dinastia Tokugawa (1615-1868), um perído de 250 anos relativamente pacífico no decorrer do qual os "shoguns" Tokugawa governaram o país do Sol nascente fixando Edo como centro do poder. Hiroshige foi o último mestre deste estilo que pretendia retratar o equilíbrio harmonioso dos elementos da Natureza com as obras e as vidas do Homem.

Desde a sua origem no início do séc. XVII, imagens e textos "Ukiyo-e" inspiraram-se em temas literários e históricos. Ao longo de dois séculos e meio, a estas características típicas, adicionaram-se novos motivos reflectindo gostos, eventos e inovações sociais contemporâneos. Esta arte sofisticada tornou-se numa arte popular, pois era extremamente acessível e apreciada, representando tanto temas históricos como as sucessivas modas e ambientes puramente elegantes. A vida, as paisagens e os artefactos comuns transformaram-se nas mãos dos artistas japoneses em algo de extraordinário, capturando a essência do momento e do indíviduo. Alguns exemplos de representações clássicas encontram-se aqui.



Na verdade, os artistas do "Ukiyo-e" exploraram 44_Takibi_no_Yashiro_Oki.jpgtodo o potencial da expressão gráfica em blocos de madeira. Cada imagem era criada recorrendo ao esforço de conjunto harmonioso de quatro artesãos especializados: o editor, que coordenava as tarefas técnicas e promovia comercialmente os trabalhos artísticos; o artista, que concebia os motivos artísticos e os desenhava a tinta sobre papel; o gravador, que esculpia meticulosamente os blocos de madeira para impressão e o impressor que aplicava os pigmentos aos blocos de madeira e lançava cada uma das cores em papel manufacturado.

No início, as gravuras eram simplesmente monocromáticas, com o desenho delineado por linhas de tinta negra espessas. Gradualmente, os artistas foram introduzindo várias cores, como o encarnado, azul, amarelo e laranja, começando também a experimentar novas texturas introduzindo jogos de brilho. Muito populares, as representações de cenas eróticas e imagens de actores do teatro representaram grande parte da produção das obras primitivas. Outros temas de grande agrado figuravam personagens e episódios de mitos e lendas japoneses.

55_Whirlpool_Awa.jpgObserve-se a leveza e a força deste "Mar Revolto em Naruto" (Província de Awa)



Outras magníficas galerias de imagens do artista com temas marítimos e fluviais (e não só) podem ser apreciadas aqui.

segunda-feira, março 29, 2004

Descrição do Natural: Percursos do Olhar e do Saber (II)

A Ciência Ilustrada


No século das Luzes, cientistas e estudantes viajaram pelo globo numa multiplicidade de expedições em busca de novas espécies piscícolas para catalogar. Com o progressivo aumento de novas descobertas no campo da Ictiologia, os primeiros biólogos confrontaram-se com a imensa tarefa de estabelecer e coordenar uma única grande matriz de classificação alargada capaz de albergar uma expansão contínua de espécies conhecidas.

Das compilações às sistematizações e pesquisas aprofundadas, foram-se sucedendo obras de teor cada vez mais complexo e métodos mais rigorosos. A ilustração toambém acompanhou a evolução qualitativa. Curiosamente, antes da invenção da litografia, o alto nível de detalhe nas pinturas a óleo e aguarelas perdia-se na técnica limitada de impressão em série de gravuras preparadas sobre blocos de madeira. Por isso, a mão do artista e as obras únicas mantiveram-se como instrumento indispensável, preservando todo o esplendor das espécies retratadas.



Aprecie-se por  map33_07.jpgexemplo, a qualidade deste exemplar de "Chaetodon striatus" desenhado em 1754, proveniente da obra de Peter Artedi
(1705-1735), aluno de Linné fundador da taxonomia moderna (sistema universal de classificação das espécies animais) que identificou cinco Ordens de "peixes" (em que incluiu os cetáceos), dividindo-os em géneros respectivos. Ironicamente, Artedi afogou-se com apenas 30 anos num canal de Amsterdão mas, graças aos cuidados do seu Mestre e amigo Linnaeus os seus manuscritos intitulados "Bibliotheca Ichthyologica" e "Philosophia Ichthyologica" publicaram-se em 1738 sob o título "Ichthyologia sive opera omnia piscibus" (exemplar da Bibliothèque Nationale de France acessível "online"), com a biografia de Artedi. Nestes estudos fundamentais, Artedi analisou em extensa bibliografia crítica as publicações científicas que o precederam e estabeleceu as modernas definições de Ictiologia e descrições dos peixes segundo características específicas, que resultaram numa actualização metódica desta disciplina.



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Na Época das Luzes, a fauna marinha vestiu-se de um colorido extravagante, particularmente bem ilustrada nesta soberba segunda edição (Amsterdam, 1754) de "Poissons, Écrevisses et Crabes, de diverses couleurs et figures extraordinaires, que l'on trouve autour des Isles Moluques et sur les côtes des Terres Australes" (cuja primeira edição data de 1719) do naturalista francês Louis Renard (1678-1746), a primeira obra consagrada ao estudo dos peixes integralmente a cores. Nas suas páginas, guarda-se o registo de perto de meio milhar de espécies de peixes e crustáceos marinhos tropicais existentes nas antigas ilhas Molucas (actual Indonésia) e Austrália. Imagens obtidas do exemplar da Biblioteca da Universidade de Glasgow.

A obra de Renard é, paradoxalmente, uma das mais edições raras e das mais famosas sobre História natural, mas vai um pouco além do estrito campo científico. De facto, contém a deliciosa curiosidade de uma avaliação degustativa própria a cada espécie, incluindo uma porção de receitas breves para preparação adequada de muitos dos peixes representados, característica verdadeiramente única na historiografia zoológica.

Não está, porém, isenta de várias imprecisões científicas e algumas fantasias.


Tome-se como exemplo a gravura de uma sereia: de acordo com a respectiva legenda, este ser fantástico foi recolhido nas costas do Bornéo, na província de Amboino e media 1,5 metros. Depois de capturado, terá sobrevivido junto à costa num tanque de água durante 4 dias e 7 horas, soltando ocasionalmente guinchos semelhantes aos de um rato. Tendo-se recusado a comer (apesar de lhe darem peixes pequenos, moluscos e caranguejos), acabou por morrer de inanição. O artista confessa que, após a morte da sereia, lhe levantou as barbatanas anteriores e posteriores, revelando as suas semelhanças com as de uma mulher. Segundo o autor, outros testemunhos citados confirmaram-lhe a existência de sereias.



Este Imperador ou Peixe-Anjo Imperial ("Pomacanthus Imperator"), conhecido no séc. XVIII por «Imperador do Japão», exibindo as magníficas listas azuis e douradas de um exemplar adulto (as dos juvenis são em preto e branco) provém de um magnífico compêndio ilustrado, "Ichtyologie ou Histoire Naturelle Generale et Particulière, des Poissons" (1785-1797). O seu autor, o médico alemão Marcus Eliezar Bloch (1723-1799), realizou estas 432 ilustrações realçando-as a ouro e prata de modo a simular o brilho natural das escamas de diversas espécies. Graças ao apoio de grandes mecenas, entre os quais se contou o rei da Prússia Frederico o Grande, o autor conseguiu adquirir inúmeros espécimens provenientes dos continentes europeu e americano e do Extremo-Oriente. Bloch introduziu 19 novos nomes genéricos de espécies de peixes, muitos dos quais se mantêm ainda hoje.


Curiosamente, Bloch só se dedicou ao estudo dos peixes aos 57 anos, tendo-se decidido a registar descrições e ilustrações exaustivas de todas as espécies do seu conhecimento. A sua primeira grande pesquisa centrou-se na fauna aquática alemã, mais próxima de si. Já o seu estudo alargado de espécies de mares distantes, surgidas pela primeira vez no "Allgemeine Naturgeschichte der Fische" (1782-1795), baseou-se em grande parte no trabalho de outros autores, apresentando por isso muitas incorrecções. No entanto, este estudo permaneceu uma referência no campo da Ictiologia por mais de 50 anos. A sua "Ichthyologia" (como ficou conhecida) foi dada à estampa como simples série de ilustrações em vários volumes, e após a sua morte, o seu colega Johann Schneider publicou o sistema taxonómico com o nome de "M. E. Blochii Systemae Ichthyologiae", no qual descreve nada menos de 1.519 espécies de peixes.

A propósito, visite-se aqui uma galeria com algumas ilustrações da obra de Bloch. E outras ilustrações na Biblioteca da Universidade de Heidelberg.


Eis uma das espécies (a lembrar outra por nós "postada" há semanas) observadas na Austrália pelo austríaco Ferdinand Lucas Bauer (1760-1826) entre 1801 e 1803.

fl040019.jpg O "Marítimo" deixa a sugestão aos seus leitores para uma visita virtual em Animação 3D ao HMS «Investigator» aqui e uma fantástica galeria de fotos do álbum de peixes Gradientes e Texturas - Ilustração Científica e Design de Comunicação é a primeira empresa portuguesa especialmente vocacionada para prestação de serviços e formação na área da Comunicação de natureza científica e ilustração de História Natural) e Pedro Salgado, cujo trabalho é internacionalmente reconhecido e tem promovido no nosso país diversos cursos de Ilustração Científica. Mais um pretexto para visitar o Oceanário de Lisboa, onde se podem apreciar diversas ilustrações suas nos paineis explicativos. Para os mais curiosos, fica a entrevista com Pedro Salgado sobre a sua actividade.

Ontem como hoje, a ilustração da Ciência permanece um trabalho de artesão, paciente e dedicado. Uma Arte com método e história...

quinta-feira, março 25, 2004

Actualizações, Agradecimentos & Sugestões

Afundamento do «Graf Spee»
A BBC dá-nos as últimas notícias sobre o ambicioso projecto de recuperação integral do cruzador alemão da II Guerra Mundial «Graf Spee» afundado ao largo de Montevideo, no Uruguai.



A torre de comunicações do navio foi retirada com sucesso, embora a equipa se tenha deparado com condições adversas, tais como fortes correntes_39861404_grafspee1-ap300.jpg marítimas e visibilidade quase nula. Veja-se a galeria de imagens sobre o navio e tripulação. Mundo Viking De épocas mais remotas, assinalam-se as notícias de uma campanha de escavação arqueológica num local de enterramento de uma mulher Viking datado do séc. X na baixa de Pskov, no Noroeste da Rússia, segundo o "Pravda", assim como a descoberta dos vestígios de um porto Viking com 1.000 anos na Noruega, situado em Faanestangen, próximo da cidade de Trondheim, cerca de 400 quilómetros a Norte de Oslo. Notícia do "Guardian".

Agradecimentos devidos
...aos "links" dos seguintes blogoespaços recém-chegados ao nosso conhecimento: Azelhas do mar, Coisas Simples, "Fio de Ariana", "Sesimbra" e "Tempore".

Outra boa surpresa que veio enriquecer este nosso Mar virtual foi desvendada há relativamente pouco tempo sob o nome de "Livro das Horas", obra-prima da ilustríssima Abadessa do Convento. Impõe-se uma visita a este vetusto lugar de culto.
Quanto ao "blog" da Teoricamente possuída, exemplarmente remodelado e revigorado com uma inovadora galeria ilustrada dos "blogs" nacionais.

Sugestões
logo_maeds1.jpg

Embora o Museu de Arqueologia e Etnografia de Distrito de Setúbal (MAEDS) ainda não disponha de um "site", existe algum conteúdo acessível "online" e podem consultar-se aqui informações de interesse sobre o património arqueológico local.

Para os amantes da história marítima da Antiguidade, deixo a notícia de que o MAEDS promove um simpósio internacional dedicado à «Produção e comércio de preparados piscícolas durante a Proto-história e a Época Romana no Ocidente da Península Ibérica», que se realiza de 7 a 9 de Maio, em homenagem a Françoise Mayet.

"O presente Simpósio procederá a um balanço do estado dos conhecimentos sobre as economias marítimas que se desenvolveram no Ocidente da Península Ibérica durante a Proto-história e a Época Romana, através da apresentação de sínteses e de estudos de caso ainda inéditos; será realizado em homenagem à Arqueóloga Doutora Françoise Mayet.

O calendário proposto para este forum de reflexão e debate justifica-se após a conclusão do programa de investigação luso-francês, levado a cabo pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS) e pela Missão Arqueológica Francesa em Portugal, na última década, com a colaboração do Ministério dos Negócios Estrangeiros de França, do Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR) e da Fundação Calouste Gulbenkian, sob a direcção de Françoise Mayet e Carlos Tavares da Silva. O referido programa consubstanciou-se em trabalhos de prospecção e escavação arqueológicas, estudos e publicações que abrangeram sítios fundamentais para a Proto-história da Península Ibérica, como a feitoria fenícia de Abul, até então inédita, e diversos estabelecimentos romanos, quer de produção de ânforas, como Abul e Herdade do Pinheiro, quer de preparação de salgas de peixe, como Tróia.

As conferências, comunicações e debates serão publicados no volume de Actas do Simpósio (número especial da revista «Setúbal Arqueológica»)."

Bom proveito.

segunda-feira, março 22, 2004

Descrição do Natural: Percursos do Olhar e do Saber (I)

Vida Marinha na Antiguidade


A primeira descrição de cariz científico sobre peixes ocorre pela mão de Aristóteles, que mencionou no séc. IV a.C. diversos factos acerca de 118 espécies, o que lhe valeu ser reconhecido na época moderna como o primeiro grande antecessor dos zoólogos.

A partir das observações sistemáticas realizadas ao longo de 5 anos no "habitat" natural da ilha de Lesbos, no Mar Egeu, o filósofo grego redige a "História dos Animais" "Historia Animalum"; outra transcrição online aqui) em 350 a.C..

Na sua escola de Atenas, fundada sob o reinado de Alexandre o Grande, Aristóteles prosseguiu as pesquisas do mundo animal, desenvolvendo um método eficaz e rigoroso e procedendo a dissecções, contribuindo para uma classificação das espécies segundo a complexidade da sua alma.






Os Peixes no Renascimento

A partir do início do séc. XVI, os artistas europeus inspiram-se cada vez mais directamente do mundo natural, na tentativa de capturar em detalhe os segredos e mecanismos dos animais e plantas, que se tornam objecto de interesse. Simultaneamente, naturalistas e amadores coleccionavam e analizavam elementos do mundo físico, divulgando os novos conhecimentos da Natureza em gravuras e obras ilustradas. Nestes estudos, arte e observação congregam dois modos de conhecimento que convergiram de modo ímpar no Renascimento: o estético e o científico.

Réunion des Musées Nationaux (França)

O interesse actual por estas raras iniciativas está patente no desafio colocados pelo rudimentares meios técnicos disponíveis para realizar observações e registos, assim como a inacessibilidade dos fundos oceânicos. Também a particular fragilidade dos animais aquáticos que se decompõem rapidamente uma vez retirados do seu meio natural, desaparecendo as cores originais, supôs um grande obstáculo à análise e correcta ilustração dos espécimens.



Pioneiros do Estudo da Fauna Aquática


O médico francês Pierre Bélon (1517-1564) adquiriu renome quando em 1551 publicou L'Histoire Naturelle des Estranges Poissons Marins avec la vraie peincture et description du Daulphin et de plusieurs autres de son espèce. Parte do sucesso deveu-se à mescla de observações científicas com elementos fantásticos de criaturas lendárias. O facto de ser uma das primeiras obras de cariz científico escrita em francês também explica a sua ampla divulgação.

Bélon, considerado o pai da anatomia comparativa e da embriologia, compôs diversas outras obras que se caracterizam pela atenção prestada ao pormenor e erudição, tais como De Arboribus Coniferis, Histoire de la Nature des Oiseaux, além de um relato das suas viagens ao Médio Oriente, sendo considerado como precursor dos estudos de anatomia comparada. Por ordem de Francisco I de França, empreendeu uma viagem científica no Mediterrâneo Oriental, recolhendo informações sobre animais exóticos, como a girafa, o crocodilo e o camaleão. Quanto à sua História Natural, o autor revela-nos o resultado das suas observações do golfinho, ocupando-se em pesquisas improvisadas durante as visitas ao mercado de peixe que frequentava, onde estudava os restos ósseos do animal, comparando-os com representações clássicas de golfinhos da Roma antiga. Curiosamente, Bélon relaciona o desconhecimento zoológico do golfinho com interdições alimentares tradicionais do Mediterrâneo, bem como ao carácter mitológico do animal.

Dois anos mais tarde, publicou outro importante compêndio, De Aquatilibus Libri Duo (1553), mais tarde traduzido como La Nature et Diversité des Poissons, avec leurs pourtraictz représentez au plus près du naturel (1555), uma das primeiras obras ilustradas de recolha pré-científica especificamente dedicada aos peixes e animais aquáticos.



A progressiva atenção dedicada à descrição da Natureza significou que as suas representações se foram aproximando gradualmente da realidade, como quando Guillaume Rondelet (1507-1566) publicou o tratado De Piscibus Marinum in quibus verae piscium effigies expressa (1554), no qual são descritas perto de 250 espécies de animais marinhos cujas características morfológicas são representadas em dezenas de gravuras.

Considerado o pai da Ictiotomia ou anatomia dos peixes, veio dar sentido ao termo "peixe". Antes do reconhecimento do seu trabalho, "peixe" era aplicável a qualquer animal aquático, vertebrado ou não. Rondelet distinguiu anatómicamente os sistemas orgânicos com tal minúcia, a ponto de distinguir claramente o grupo de peixes que respiram através das brânquias, dos mamíferos aquáticos, cuja mencionada função é exercida por órgãos mais complexos denominados pulmões.




Entre 1551 e 1558 o médico00000232.jpg suíço Konrad Gessner (1516-1565) publica a monumental Historia Animalium (dividida em 5 Livros, contendo 4.500 páginas abundantemente ilustradas, de grande impacto na Europa renascentista. Trata-se da mais importante compilação zoológica do Renascimento, na qual se sintetizou o conhecimento da época sobre o reino animal.

O quinto volume, "Liber Quartus, qui est de Piscium et Aquatilium animantium natura" (1558) contém descrições de peixes e outros animais aquáticos. Embora imbuído de uma concepção medieval tanto pela sua organização alfabética, como pela profusão de informativa não estritamente zoológica que recolhe (como os usos medicinais, as virtudes morais ou as referências literárias e históricas dos animais que regista), foi o ponto de partida imprescindível a todos os estudios zoológicos posteriores.

Gessner, típico homem multifacetado do Renascimento, auto-intitulava-se "Filósofo, Doutor, Gramático, Filólogo, Poeta e Estudante de Todas as Línguas", mas destacou-se como um dos maiores naturalistas de Quinhentos.








Outro dos pioneiros naturalistas foi Ippolito Salviani (1514-1572). Em Roma, zoom_squid.jpgonde praticava Medicina e se ocupava na investigação da vida marinha, o seu talento, formação e afeição pela História Natural mereceram-lhe a amizade do Cardeal Cervini, conseguindo ser nomeado médico do Papa Júlio III. O apoio financeiro do seu generoso mecenas possibilitou a recolha de elementos de França, Alemanha, Inglaterra e da Grécia, relativos às representações morfológicas dos peixes que se propôs descrever, assim como o estabelecimento de uma oficina tipográfica em sua casa para a impressão da sua obra monumental sobre os peixes do Mediterrrâneo, "Aquatilium Animalium Historiae Liber Primus", publicada entre 1554 e 1558.
Assim, as grandes obras de pesquisa baseadas na experiência e na observação surgem nesta época, como os estudos fundamentais Histoire Naturelle des Poissons do francês Guillaume Rondelet, do italiano Ippolito Salviani (primeiro estudo dos peixes ilustrado em gravuras especialmente preparadas) e do bolonhês Ulisse Aldrovandi (1522-1605), De Piscibus Libri V et De Cetis Libri Unus (1613), publicado pelos próprios alunos a partir dos seus manuscritos (parte de uma imensa obra de 12 volumes contendo mais de 5.000 ilustrações), e de John Johnston, Theatrum Universale Omnium Animalium Piscium, Avium, Quadrupedum, Exanguium, Aquaticorum, Insectorum, et Angium (publicado em 1650).

Os cadernos de aguarelas soberbas de Aldrovandi conservados na Biblioteca da Universidade de Bolonha estão disponíveis online.

Todos estes estudos zoológicos ilustrados abrangem a Arte e a Ciência no início da sua maturidade. Se, por um lado, o seu objectivo principal é científico, muitas delas incluem imagens novamente realizadas de extraordinário valor estético e artístico.



Georg Markgraf: um Humanista nos Trópicos

Já no século XVII outros exploradores depararam-se com novas espécies de peixes. O alemão Georg Markgraf, por exemplo, adicionou mais de uma centena ao conjunto já conhecido.


Maurício de Nassau embarcou com uma comitiva de pintores, artistas e cientistas 150 anos antes das expedições de Alexander von Humboldt pela América Latina. O resultado está contido neste "corpus" artístico e científico sem precedentes de quadros, gravuras e desenhos únicos, mapas e levantamentos da fauna e flora brasileiras ricamente ilustrados. Este material ajudou a formar a imagem do Novo Mundo na Europa, numa época em que só havia relatos mais ou menos fantasiosos sobre os nossos índios canibais.


Exemplares inéditos, como a piranha, o mucu (lampreia) e a aracatuaia (peixe-galo) resultam das observações de Willem Pies (1611-1678), médico e naturalista holandês, e Georg Markgraf (1610-1644), naturalista alemão, que acompanharam em 1638 o príncipe Maurício de Nassau-Siegen na sua viagem ao Brasil, onde tomou posse como governador das efémeras colónias holandesas no Nordeste recém-conquistado. Willem Pies foi médico do príncipe e percorreu o país durante 6 anos juntamente com Markgraf.



O resultado desta expedição patrocinada pela Companhia das Índia Ocidentais holandesa foi a extraordinária compilação intitulada Historiae Rerum Naturalium Brasiliae (publicada em Amsterdam, 1648), cuja tradução em português se encontra acessível onlin aqui (infelizmente, de fraca qualidade). Trata-se do primeiro estudo científico de História Natural do Brasil, e o mais importante livro de referência neste domínio até ao século XIX.

Pies redigiu a primeira parte com as suas observações médicas sobre a botânica e drogas naturais, enquanto que a parte de Markgraf é póstuma, contendo as suas notas sobre as plantas, peixes, aves, mamíferos, répteis e insectos locais, assim como a geografia e os habitantes. Este estudo tornou-se na mais importante obra de referência sobre este tema até ao séc. XIX.

segunda-feira, março 15, 2004

O que têm em comum um navio de guerra, uma carruagem do Metropolitano e um avião comercial?

Começemos pelo ex-porta-aviões norte-americano USS «Oriskany», popularmente conhecido como "Mighty O", um gigante de 30.800 toneladas e 275 metros de comprimento. Pois bem, ao abrigo do "Inactive Ships Program", sob a alçada do Naval Sea Systems Command (NAVSEA) e em conjunto com a MARAD (Maritime Administration) irá tornar-se em breve no maior recife artificial subaquático de origem militar. Uma atracção de peso, mas que conhece outras formas, como iremos ver mais à frente.

A construção do porta-aviões iniciou-se nos estaleiros navais de Nova Iorque ainda durante a II Guerra Mundial, mas foi lançado à água só em Outubro de 1945, já depois do final do conflito. No decorrer do seu distinto serviço, integrou as Sexta e Sétima Frota norte-americanas no Pacífico, operando durante as Guerras da Coreia e Vietname, servindo a US Navy até 1976, data da sua desmobilização. Vendido em 1997 para sucata, escapou ao desmantelamento por falhas contratuais e foi readquirido pela Marinha dos Estados Unidos dois anos depois.

Hoje em dia, após uma extensa limpeza e remoção de materiais poluentes, o "Mighty O" aguarda no Texas desde 1998 a sua derradeira morada, entre os Estados que o querem acolher nas suas águas: Florida, Mississippi, Texas ou os candidatos conjuntos da Georgia e Carolina do Sul.

Actualmente, ainda existem mais 24 navios da US Navy (desde cruzadores lança-mísseis a porta-aviões da classe "Forrestal" com 331 metros) que aguardam a sua vez para se tornarem residência submarina.
Notícia da "Cyber Diver News Network" e uma excelente selecção de fotos sobre a história do USS «Oriskany».

... também antigas carruagens do Metropolitano de Nova Iorque como esta são apenas o início de uma nova "colónia" de 50 carruagens mergulhadas no Shark River Reef frente ao Estado de New Jersey, cuja colocação é coordenada pelo Corpo de Engenharia do Exército dos Estados Unidos. A Autoridade de Transporte da Cidade de Nova Iorque pensa agora ser este o melhor destino para 1.300 carruagens desmobilizadas. Mais alguns detalhes nos comunicados do Departamento de Protecção Ambiental de New Jersey e da "Division of Fish and Wildlife" estadual.



Galeria de fotos subaquáticas das carruagens afundadas aqui.

...e aviões também!


Entretanto, já no próximo mês de Maio um Boeing 737-200 construído em 1966, desafectado e doado pela "Qwest Airparts" do Tennessee será submergido no Oceano Pacífico, uma milha ao largo da Ilha de Vancouver, no Estado da Columbia Britânica (Canadá), graças aos esforços da associação sem fins lucrativos "Artificial Reef Society of British Columbia", com o apoio das autoridades municipais, entidades de Turismo e numerosos centro de mergulho locais. A limpeza e preparação da fuselagem do avião deveu-se ao trabalho de inúmeros voluntários desejosos de participar na concretização do primeiro recife artificial em forma de... aeronave.

História completa no "Seatte Post Intelligencer", na "Cyber Diver News Network" e "DiverNet". Mais fotos da operação aqui.

Finalmente, mais próximo de nós, outro projecto envolvendo a fragata da Royal Navy HMS «Scylla» (activa entre 1968 e 1994), destinado a transformá-la num dos primeiros recife artificiais europeus a partir de um navio de guerra (juntamente com a fragata HMS «Sirius», afundada em 1998) ao largo da Cornualha será consumado este mês ou no próximo. A "Artificial Reef Consortium" é a responsável pelo evento, que poderá vir a ter seguidores proximamente. Já se aceitam inscrições para os primeiros mergulhos.

sexta-feira, março 05, 2004

Estranhas Formas de Vida

Arte e Ciência do Mundo Marinho (e não só)
Iniciamos este breve roteiro por uma exposição de Fotografia Científica "Images from Science", da Rochester Institute of Technology (Nova Iorque), "online" desde 2002. Esta instituição promotora de actividades fotográficas desde há mais de 100 anos, intervém mais recentemente na educação e pesquisa científica, reuniu aqui fotos realizadas no âmbito de estudos científicos nas áreas da Oceanografia, Geologia, Biologia, Engenharia, Medicina e Física, divulgando a abrangência da imagem de alta resolução no campo das Ciências.

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Seguimos para uma visita a exemplares marinhos de escala ínfima. O Instituto para a Promoção do "Menor que Um Milímetro" apresenta o Museu Micropolitan (leram bem) de formas artísticas microscópicas. Uma colecção excepcional de Microfotografias, a ver de perto.

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As duas curiosas gravuras seguintes representam, respectivamente, exemplares de "Zeus Spinosus" e de "Cyprinus Cylindricus".

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Formam parte das colecções conhecidas por "Museum Adolphi Friderici", reunidas pelos reis da Suécia Adolf Fredrik (1710-1771) e Lovisa Ulrika (1720-1782), e as publicações do seu ilustre súbdito Carl Linnaeus, autor da catalogação científica (realizada AUTAS001124072570.jpgentre 1754 e 1764). As colecções originais têm vindo a ser reconstituídas pelo Museu Nacional de História Natural, em Estocolmo.

Concluindo esta breve ronda pela vida marinha, temos um Dragão Marinho naturalmente disfarçado de alga ("Weedy Sea Dragon") pintado pelo inglês William Buelow Gould (1801-1853) que terminou os seus dias como recluso na remota ilha da Tasmânia (Sul da Austrália). O seu caderno de pintura sobre peixes conserva-se actualmente na Allport Library and Museum of Fine Arts no Estado australiano da Tasmânia e está disponível no respectivo "site" da Biblioteca Estatal da Tasmânia.

terça-feira, março 02, 2004

O Regresso dos Vikings

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De Inglaterra vem a notícia de um dos mais importantes achados arqueológicos sobre os Vikings em terras de Sua Magestade. Segundo os arqueólogos do Museu do Yorkshire, trata-se muito provavelmente de um local de enterramento num navio Viking, o primeiro a ser descoberto em Inglaterra.

Graças a entusiastas de fim-de-semana munidos de detectores de metal, um primeiro conjunto de 130 artefactos foi posto a descoberto: uma fivela de cinto, espadas, pregos de navio e uma colecção de lingotes e moedas de prata (entre as quais um exemplar árabe cunhado em Bagdad) datadas do final do séc. IX num campo cultivado do Yorkshire (Norte de Inglaterra), próximo da margem de um rio. Prepara-se agora a escavação do local que poderá revelar vestígios de um hipotético navio Viking.

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Achados Vikings em Yorkshire, Inglaterra
Este tipo de achados é contemporâneo da prática de inumação de líderes Vikings nos seus navios de guerra (os "drakkars"), junto com com os seus tesouros e possessões pessoais que lhes seriam de utilidade no Além. Esta valiosa colecção vai enriquecer as reservas do Museu local após estudo pelos técnicos do British Museum e os seus achadores devidamente compensados por terem respeitado o património e comunicado o achado às entidades competentes. De facto, vale a pena salientar que os achadores comunicaram a descoberta através do "Portable Antiquities Scheme", uma base de registo voluntário relativa a artefactos arqueológicos achados pelos cidadãos. Uma ferramenta eficaz na preservação do património, aberto à contribuição pelo público. A base de dados, que ultrapassa os 60.000 artefactos, está disponível online.

A importância destes vestígios prende-se com um período ainda pouco conhecido em que os Vikings se estabeleceram nas terras que assolaram previamente, após as primeiras vagas de assalto às costas inglesas.

Mais pormenores nas notícias do «Guardian» e aqui (ilustrada).

O local de enterramento em navio mais antigo na Inglaterra encontra-se em Sutton Hoo, datado do século VII. Descoberto em 1938, consiste no único túmulo real Anglo-Saxão conhecido até hoje, pois muitos outros foram alvo de vandalismo e saqueadores nos séculos que se seguiram. Do navio de 30 metros de comprimento já só restava o "negativo" das formas do casco impressas naturalmente na camada de terra que o suportou. O "site" oficial oferece alguma informação complementar.



Fantasmas dos Vikings na Ibéria

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Navio viking representado na tapeçaria de Bayeux, que representa a invasão normanda de Inglaterra por Guilherme o Conquistador, séc. XI (Normandia)
Na fachada atlântica da Península Ibérica, a passagem dos guerreiros-navegadores nórdicos deixou memória muito vaga, mas sabe-se, por exemplo, que no ano de 966 uma frota de 28 navios Vikings terá sido avistada, tendo sido enfrentada por uma esquadra de galés andaluzas ao largo da costa algarvia, ao largo da ribeira de Silves. De acordo com um testemunho, vários destes navios nórdicos terão sido afundados.

Já na década de 1970 foram encontrados entre Portimão e Silves, vestígios de uma embarcação de casco trincado que entretanto terá sido escondida por fortes assoreamentos e destruída por sucessivas dragagens nas 2 décadas seguintes devidas ao desrespeito patrimonial demonstrado pelas autoridades portuárias da época.

Os hipotéticos vestígios arqueológicos de um navio viking fizeram assim uma reaparição efémera, proximo da área estudada recentemente no âmbito do Projecto Arqueológico Subaquático da foz do rio Arade (Portimão). Os estudos e relatórios preliminares estão disponíveis aqui e aqui. Embora os resultados preliminares das análises de datação e das campanhas arqueológicas iniciadas em 2002 por uma equipa internacional que reuniu arqueólogos e mergulhadores de 4 instituições: o CNANS, o Grupo de Estudos Oceânicos (GEO), a Universidade de São Paulo (Brasil) e o Institute of Nautical Archaeology (da Universidade de Texas A&M) tenham para já afastado qualquer ligação entre navios vikings e os vestígios conhecidos, valerá a pena aguardar pelo prosseguimento dos trabalhos.
Parte deste trabalho esteve recentemente em exposição no Museu Nacional de Arqueologia (como já pudemos noticiar).

Mais detalhes históricos acerca da passagem pelo Condado Portucalense dos temíveis homens do Norte aqui.



Navio de Gokstad, construído no séc. IX e descoberto em 1880 (Oslo, Noruega)

Navios como estes, movidos a vela ou a remos, tornaram-se nos meios ideais para os ataques dos temidos guerreiros do Norte. A sua configuração longilínea e a qualidade da construção robusta mas elegante permitia uma navegação rápida, de manobra ágil e furtiva, beneficiando de um calado tão reduzido que facilitava o seu encalhe nos frequentes desembarques em praias, assim como as incursões rios acima. A mestria da navegação nórdica levou os Vikings a expandirem-se para bem longe, rodeando as costas europeias até ao Mediterrâneo e para Oeste até ao continente norte-americano (cerca de 500 anos antes de Colombo).



No Tempo dos Guerreiros-Navegadores

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Hoje em dia, algumas das célebres figuras de proa que aterrorizaram as povoações costeiras da Europa durante a Idade Média encontram-se exposição em vários museus, como no Museu do Navio Viking em Roskilde (Dinamarca), junto ao local onde foram descobertos no final do séc. XIX 5 embarcações afundadas intencionalmente no séc. XI para bloquear o acesso ao porto. A partir dos dados obtidos nestes naufrágios, foram construídas 3 réplicas, cuja navegação se mostrou bem sucedida: entre 1984 e 1986 a réplica de um dos navios de carga descobertos ("Wreck 1") circumnavegou os mares do Mundo. Desde então, muitas outras réplicas têm sido construídas para testar métodos de construção e "performances" dos navios Vikings.

Também o "Viking Ship Museum" de Oslo, na Noruega, conserva os elegantes cascos dos navios naufragados de Oseberg, Gokstad e Tune, entre outros.

Actualmente, decorre uma exposição sobre a Era dos Vikings no "Smithsonian National Museum of Natural History" (Washington D.C.), acessível numa soberba visita interactiva em "Vikings: The North Atlantic Saga".

segunda-feira, março 01, 2004

Livingstone e a Mensagem na Garrafa

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Segundo "The Guardian", um dos hábitos do eminente explorador e médico missionário escocês David Livingstone (1813-1873) (além da sua arrogância para com os rivais exploradores e deixar o seu nome gravado nas árvores por onde passava) era o envio de mensagens em garrafas seladas. Livingstone, o primeiro europeu a empreender a travessia do grande Lago Tanganyika, descobriu para o mundo ocidental as monumentais cataratas de Victoria (Victoria Falls, entre a Zâmbia e o Zimbabwe) e embrenhou-se pela África negra profunda, na busca da lendária nascente do Nilo, mas morreu antes de atingir o seu objectivo.

História de uma Garrafa e seus Donos
A mensagem foi deixada na garrafa por Livingstone na foz do rio Zambeze em Maio de 1859, após uma infrutífera semana de espera por navios ingleses para o recolher. Nesta carta, o explorador informa que vários membros da expedição sofrem de graves febres, pedindo o envio urgente de provisões e noticiando a subida do rio Zambesi e descoberta do Lago Shirwa (Moçambique).

A garrafa acabaria por ser encontrada por um navio-patrulha da "Royal Navy" algum tempo depois e foi vendida a Sir James Donnet, um cirurgião de bordo, tendo sido vendida posteriomente por um descendente seu num leilão em Nova Iorque em 1957. Foi adquirida por um coleccionador inglês Quentin Keynes (curiosamente, um bisneto de Charles Darwin), que também visitara o Zambeze, onde encontrou as iniciais de Livingstone gravadas numa árvore.

Relíquia Valiosa
No próximo mês de Abril, a "Christie's" de Londres irá leiloar de novo esta relíquia, cuja expectativa de venda ronda as 20.000 Libras (30.000 Euros).

A mensagem será vendida juntamente com outro documento assinado por Livingstone e Sir Henry Morton Stanley, o jornalista americano enviado a África para descobrir o explorador, tendo sido autor da célebre frase proferida quando do encontro de ambos no meio da selva africana: "Mr Livingstone, I presume?"...

sábado, fevereiro 28, 2004

Agradecimentos e Recomendações

Ao "Diário de Bordo", que continua a maravilhar-nos com as suas sábias deambulações por terras escandinavas, assim como aos curiosos "Conta Natura" , "Gasolim" e "Digitalis", pelas suas amigáveis visitas e "links" a este vosso "blog". Filosofia, Biologia, Psicologia, Poesia e alguma Fotografia são específicos destas embarcações de águas profundas.

Referência especial ao Luís Serpa, do "Don Vivo", que entre excertos de Borges e sugestões gastronómicas, regadas de boa pinga, nos brinda com a partilha de um raro prazer na Blogosfera: a navegação à vela e estórias vividas no Mar (a propósito, o Henrique continua a surpreender pelas suas narrativas marítimas, a não perder): recomendo, entre outras iguarias, o "post" sobre a Navegação no Lago Tanganyika. A arte de bem navegar na Blogosfera, ao correr do teclado.

P.S. Já terão reparado em algumas incongruências gráficas ocorridas recentemente neste humilde "blog". A casa está em obras e o hábil empreiteiro está em pleno trabalho. Espero exibir a nova fatiota em breve.

sexta-feira, fevereiro 27, 2004

"Doggerland": Mundo Submerso sob o Mar do Norte

Quando o Canal da Mancha era apenas uma extensão de terra
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A cartografia da paisagem pré-histórica do fundo do actual Canal da Mancha está a ser revelada por uma equipa multi-disciplinar de cientistas da Universidade de Birmingham, reunindo arqueólogos, geólogos e engenheiros informáticos. "Doggerland" foi o nome com que os geólogos baptizaram a antiga região, devido ao nome do mais alto cume submerso, denominado Dogger Bank, no qual diversos artefactos pré-históricos têm sido achados fortuitamente por pescadores e geólogos. Actualmente, está em curso o Projecto Doggerland dirigido pela Universidade de Exeter, que incluirá prospecções subaquáticas mais detalhadas dos fundos do Mar do Norte.

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Para realizar esta ambiciosa reconstituição em 3 dimensões, a equipa recorreu a dados sísmicos fornecidos pela companhia Petroleum Geo-Services que serve a Indústria de exploração de Petróleo e Gás (confirmando os bons frutos de parcerias semelhantes nos Estados Unidos, como noticiámos em "post" recente), afim de compôr uma visualização desta vasta antiga planície que unia as ilhas britânicas à Europa no período Mesolítico, há 10.000 anos atrás, tendo sido submergida há perto de 8.000 anos, encontrando-se hoje o nível do mar (em média) cerca de 100 metros acima do nível antigo. Entre as várias revelações estão um rio com 600 metros de largura e semelhante em comprimento ao Tâmisa que desapareceu quando o vale em que se encontrava foi inundado pelo degelo dos imensos glaciares que então se encontravam próximos.

Trata-se do mais completo projecto de realidade virtual desde "Virtual Stonehenge", realizado em 1996 (infelizmente, já não disponível "online").
Os cientistas basearam a flora antiga gerada em computador a partir de vestígios de pólen e plantas extraídas de prospecções geológicas obtidas no fundo oceânico.

Segundo o Director do Institute of Archaeology and Antiquity da Universidade de Birmingham, com esta reconstituição da paisagem pré-histórica pretende-se disponibilizar aos cientistas um novo olhar e novos ferramentas para o estudo da ocupação humana na região do Mar do Norte.

Notícia da BBC.

Na verdade, os achados pré-históricos nas profundezas do Mar do Norte têm sido registados com alguma regularidade, como por exemplo, estes utensílios ao largo da costa de Inglaterra, pesquisado pela S.A.L.T. (Submerged Archaeological Landscape Team), equipa arqueológica da Universidade de Newcastle upon Tyne que estuda a morfologia costeira antiga do litoral inglês.

Para mais detalhes, veja-se a informação disponibilizada pela Universidade de Birmingham.

Conhecimento do Oceano no Algarve
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Mais perto de nós, no âmbito do projecto "Ciência Viva", decorre desde 10 de Janeiro no "Experimentarium" do Centro Ciência Viva do Algarve (em Faro), uma exposição interactiva sobre investigação e a divulgação do conhecimento do Oceano. Recolher destroços do fundo do oceano através de um braço robótico, satisfazer curiosidades sobre as novas tecnologias subaquáticas e conhecer a biodiversidade dos fundos oceânicos são algumas das possibilidades oferecidas pela exposição "No Profundo Oceano".

A exposição, dedicada às Ciências do Mar, resulta de uma parceria do Centro Ciência Viva com a Ocean Technology Foundation (OTF) da Universidade de Connecticut nos EUA, uma organização sem fins lucrativos que apoia a investigação no domínio das Ciências do Mar e das tecnologias de exploração subaquática.
Outro colaborador da exposição é o Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS) que tem desenvolvido estudos arqueológicos no Algarve.

No centro da exposição está a "Ocean Base One", primeiro laboratório subaquático permanente semelhante a uma estação espacial, onde o ser humano pode viver por longos períodos de tempo a uma profundidade de 150 metros. Nesta estrutura fazem-se investigações sobre o controlo ambiental, aquacultura, pescas e as novas tecnologias de exploração subaquática. A exposição informa ainda sobre as áreas costeiras, submersíveis, luz, distorção da voz, pescas, desperdício dos recursos vivos do mar e a sustentabilidade dos ecossistemas marinhos.

Uma pequena visita virtual que se consulta num instante, para quem não puder descer ao Algarve.

quarta-feira, fevereiro 18, 2004

O Navio de Newport: um Mistério Marítimo do Renascimento



A Descoberta
Em Junho Ship%20pic.jpg de 2002, a construção de um novo complexo de Artes e Teatro na margem do rio Usk, na cidade de Newport (País de Gales), pôs a descoberto o casco bem preservado de um navio mercante antigo, posteriormente datado de c. 1465. Arqueólogos, historiadores e a população local rejubilavam ante esta revelação de excepcional importância, tanto para a história local e britânica como para a Arqueologia Náutica.

Porém, cedo se revelou que o Conselho Municipal (Newport City Council), proprietário legal do local onde ocorreu esta admirável descoberta, planeava prosseguir as obras após a conclusão de um breve estudo do navio. Previa-se que, após o levantamento de registos preliminares e recolha de amostras, grande parte do casco fosse destruída logo no final de Agosto de 2002, permitindo a conclusão das obras no prazo previsto.

De imediato, formou-se um amplo movimento cívico para salvar o navio de Newport, adequadamente denominado "Friends of the Newport Ship", defendendo a salvaguarda desta nova peça de património marítimo mediante a sua conservação e estudo pormenorizado. O apoio reunido foi de tal ordem que a Assembleia Nacional Galesa viu-se obrigada a intervir, assegurando o necessário financiamento da remoção e conservação do navio. O custo total, estimado em 3,5 milhões de libras, é suportado não só pelo Conselho Municipal e o Governo Regional (Assembleia Galesa), como também através de contribuições e donativos públicos.

A Importância do Navio de Newport
Trata-se do mais completo casco de um navio do séc. XV descoberto e conservado na Europa. De facto, e apesar das obras terem destruído partes do navio, o casco, construído em carvalho (a quilha em faia), manteve-se na sua quase totalidade, estimando-se o seu comprimento original em 25 metros e 8 metros de largura máxima. Também se registaram indícios claros da existência de um convés e da superestrutura. Calcula-se que deslocasse entre 100 e 200 toneladas, o que o tornava num navio de médio porte, perfeitamente adaptado a navegações atlânticas.

Recorrendo à dendrocronologia, algumas madeiras do casco forneceram uma datação precisa, entre 1465 e 1466, relativamente ao corte das árvores destinadas à sua construção.




Historicamente, o navionship26big.jpeg é um testemunho eloquente das navegações mercantes florescentes no porto de Newport em particular, e da Inglaterra em geral.
Arqueologicamente, o casco descoberto representa uma etapa evolutiva a meio caminho entre embarcações medievais e os grandes navios do Renascimento. No fundo, ainda é um navio construído segundo o saber e técnicas empíricas medievais. Constitui também o único exemplar sobrevivente de navio mercante armado do séc. XV, anterior em várias décadas à construção do famoso «Mary Rose», nau de guerra de Henrique VIII afundada em 1545, cujo casco foi recuperado e se encontra hoje conservado em museu próprio nas docas de Portsmouth.

A descoberta de um navio contemporâneo dos Descobrimentos adquire naturalmente um imenso valor potential no conhecimento técnico e antropológico das práticas marítimas do Renascimento. Um potencial que vai sendo devidamente avaliado à medida que os trabalhos de conservação e análise desvendarem os segredos contidos nestes fascinantes vestígios de uma outra Era, em que se deram os primeiros passos através dos mares no caminho da globalização.

Na mesma década em que morreu o Infante D. Henrique, grande impulsionador das navegações portuguesas, e apenas 20 anos antes da passagem do Cabo das Tormentas (re-baptizado da Boa Esperança) por Bartolomeu Dias e 30 anos antes da chegada de Vasco da Gama à Índia.
De tonelagem semelhante à sua contemporânea caravela «Santa María» que conduziu Colombo na sua primeira grande viagem de descoberta, o navio de Newport apresenta um porte comum (na sua época) de unidades utilizadas no transporte de archeiros galeses durante a Guerra dos Cem Anos. Aliás, terá sido num navio deste tipo que Henrique VII se fez transportar a Gales no decorrer das Guerras das Rosas.

"Save Our Ship": a Luta pela Recuperação
A campanha SOS ("Save Our Ship") logrou obter resultados positivos junto do círculo político regional, mediante o apoio de uma enorme onda de apoio popular, institucional e científica gerada em torno do achado. Com a ajuda do "site", visitas guiadas ao local de escavação, debates públicos, artigos de imprensa, manifestações de rua e recolha de assinaturas foi realmente possível salvar o navio em perigo. A BBC também esteve presente e realizou um documentário que deu a conhecer esta intervenção arqueológica.

Mas nem tudo foi pacífico. A pesada cofragem instalada durante os trabalhos prévios no estaleiro de obras e intervenções anteriores na margem do rio ditaram a destruição quase total da popa e proa do navio. Posteriormente à primeira fase de escavação, o desinteresse por parte do empreiteiro ficou comprovado com a intencional destruição de parte da popa do navio, afundada numa imensa massa de betão, isto apesar de um relatório arqueológico anterior ter prevenido quanto à importância de uma sondagem final nesse local.



Ao lado pode verBow-&-Stern-projections.jpg-se o perímetro da cofragem com as consequentes zonas afectadas (popa e proa) e a área escavada.

A equipa arqueológica inicial, proveniente da Glamorgan Gwent Archaeological Trust, completou o registo, escavação e remoção da secção principal do casco, tendo sido substituída em 2003 por uma equipa mista da Universidade de Oxford e do "Mary Rose Trust", instituições especializadas em arqueologia náutica. As peças, removidas individualmente, foram armazenadas e submersas em grandes tanques de conservação cedidos por uma empresa siderúrgica local.
O relatório arqueológico da equipa da Universidade de Oxford relativo à escavação da proa, está disponível aqui .



Enterrado nas lamas fluviais,  ship3.jpgo navio permaneceu bem conservado em ambos os bordos (embora o de estibordo tenha colapsado).
Sobreviveram assim 63 cavernas que compunham o esqueleto estrutural interno do navio, assim como 32 tábuas de forro no lado de estibordo e outras 16 a bombordo. Várias peças de reforço, como escoas e peças de enchimento mantiveram-se "in situ" unidas às cavernas por cavilhas de madeira, assim como algumas tábuas do forro interior. Também se conservou a carlinga (base) do mastro principal, completa com o poço da bomba (de escoamento da água). O casco "trincado" (em tábuas sobrepostas), característico dos navios medievais exibia uma imensa quantidade de pregadura em ferro .

A boa qualidade de construção é evidente, em particular as grandes escarvas de junção nas grandes peças de madeira, algumas das quais eram compostas por um conjunto de 7 peças, assinalando-se nestas mesmas peças vestígios do trabalho na madeira marcado pelas ferramentas de carpintaria.

Ao longo da escavação, foram sendo encontrados artefactos associados, como vários exemplares de calçado em cabedal, fragmentos têxteis, restos de velas e roupa de lã, cabos e cordame diverso, cerâmica, algumas moedas, projécteis de artilharia em pedra, e instrumentos em madeira relativos à navegação (cadernais), aduelas de barris, além de artefactos pessoais: dois pentes e uma peça de jogo. No final da intervenção, foram também descobertos ossos humanos.




Dada a emergência da intervenção, não foi possível actuar com um plano (e condições) inteiramente _38265024_ship300.jpgpré-definidas. Entre limitações impostas pela segurança no estaleiro de obras e a pressão para concluir no mais breve prazo possível, a equipa deitou mãos à obra, cuidando de nunca pôr em risco a integridade das peças, as quais exigiam um constante humedecimento para evitar a sua destabilização. Após um registo tão completo quanto possível, o navio foi desmontado peça a peça, na ordem inversa pela qual foi construído. O delicado processo de remoção demorou cerca de 13 semanas, sendo necessário serrar cuidadosamente as cavilhas de madeira e desagregar as concreções nos espaços anteriormente ocupados pela pregadura, de modo a separar todas as peças. O peso e dimensão de algumas das peças de madeira retiradas (algumas com 200 e 400 quilos) recorrendo a meios industriais.

A somar a estes condicionamentos, o navio exibia feridas recentes: uma grande quantidade de pilares em betão já tinham sido trespassado o casco em vários locais (visíveis nas fotografias), ainda antes de se declarar o seu achamento. Impunha-se a sua remoção, complicando sobremaneira a estabilidade do casco. Devido a estes estragos, a peça de maior comprimento não tem hoje mais de 6 metros.



Ao lado, uma imagem gerada em computador da zona da proa afectada por um pilar em betão.

As atenções da equipa centram-se neship03fig06.jpg agora noutra descoberta, revelada sob o local do casco, uma estrutura de apoio em madeira que aparentemente mantinha o navio de pé durante o que se julga ter sido uma operação de reparação fracassada, ditando o abandono do navio.

Prevê-se a exposição permanente do navio não muito longe do local onde foi desenterrado, reconstruído tal como foi encontrado, no novo Centro de Artes e Teatro de Newport, cuja inauguração está prevista para meados deste ano.
Os visitantes poderão então admirar e passear sobre uma estrutura em vidro instalada por cima do casco, além de uma galeria inferior, ao nível da estrutura. Um passeio a bordo da História marítima na última morada do navio misterioso.

O Conde "Fazedor de Reis" e os Piratas Medievais Ingleses
Recentemente, as investigações em arquivo produziram provas que apontam para o envolvimento do famigerado Conde de Warwick (1428-1471), primo do rei Ricardo III e figura chave na poítica medival inglesa. Assim, o único navio inglês sobrevivente do séc. XV surviving medieval poderá ter sido propriedade de Richard Neville, cognominado Warwick "the Kingmaker" ("o Fazedor de Reis"), devido ao seu poder, riqueza e influência na Corte inglesa. Mediante manipulações suas Eduardo IV chegou a trono em 1461, e o deposto Henrique VI conseguiu retomá-lo, brevemente, em 1470. A sua fama valeu-lhe ser imortalizado como uma das personagens principais em algumas das peças históricas de William Shakespeare: "Henry VI" (Parte 2) e "Henry VI" (Parte 3), cuja acção decorre no cenário instável e violento das Guerras das Rosas entre as Casas de York (defendida pelo Conde) e Lancaster.

Na realidade, o Conde ganhou notoriedade pela sua participação activa no fomento da pirataria. Apoderou-se de Newport após a morte em combate do seu antecessor, o Conde de Pembroke. No final de 1470, Warwick interveio na defesa de Inglaterra e Gales face a uma tentativa de desembarque liderada pelo deposto Eduardo IV. Contudo, no ano seguinte foi morto na Batalha de Barnet e Eduardo IV reconquistou a Coroa.

Nessa altura, o Conde recorreu aos seus próprios recursos financeiros em apoio da Casa Real, contraindo dívidas pesadas. Para reequilibrar as suas finanças, Warwick permitiu aos seus navios a prática da pirataria, o que resultou na captura de inúmeros navios portugueses, espanhóis e bretões. Calcula-se que a frota privada do Conde de Warwick incluísse navios de grande porte (para a época), de até 350 toneladas. Uma carta de Warwick entretanto revelada dá-nos a conhecer ordens suas para reparações a fazer num navio de alto-bordo justamente em Newport no ano de 1469.

Porém, há nesta história e nos vestígios da carga do navio de Newport um elo português, que levantam novas teorias.

Um Naufrágio Português em Terras de Sua Magestade?
A hipótese atraente de o navio de Newport poder ter sido português, capturado por piratas ingleses e trazido para o País de Gales não está inteiramente posta de parte, mas também carece de provas suficientes.

Entre os 300 artefactos a bordo do navio, encontraram-se abundantes fragmentos de cerâmica portuguesa e 4 moedas de cobre dos reinados de D. Duarte (1433-1438) e D. Afonso V (1438-1481), para além de grandes pedaços de cortiça (não há ainda imagens disponíveis na Internet). Aparentemente, o navio regressara recentemente de Portugal.




Seria interessante poder  P9082940.jpgcomparar técnicas e detalhes de construção com outros destroços de navios tardo-medievais descobertos, por exemplo, em Portugal: dois exemplos recentes "Aveiro F" e "Aveiro G" (não considerando o "Ria de Aveiro A" devido ao seu reduzido porte e dimensões), ambos de casco trincado e datados do séc. XV, embora em mau estado de conservação poderiam sem dúvida base de estudo comparativo. Infelizmente, ainda não há dados disponíveis "online" quanto à informação extraída destes dois naufrágios, descobertos e estudados nos últimos dois anos por equipas do CNANS (Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática).

Mais completa é a informação coligida por Paulo Jorge Rodrigues no seu trabalho arqueológico sobre o denominado navio do Cais do Sodré. Recorde-se que as embarcações conhecidas por "Ria de Aveiro A" e "Cais do Sodré", ambas do século XV, constituem dois dos mais antigos marcos da técnica de construção em "esqueleto primeiro" ("skeleton-first") na Europa atlântica.

De qualquer modo, a intervenção do navio em acções militares é consensual, pois também se encontraram diversas peças utilizadas em capacetes, projécteis de artilharia e pelo menos uma braçadeira de protecção utilizada pelos archeiros da época.
Ao que tudo indica, os trabalhos de reparação do navio, terão sido abandonados na mesma época em que o Conde de Warwick se encontrava em dificuldades, tendo sido abandonado à beira-rio.

No entanto, a história do navio talvez só emergirá após o longo programa de conservação, restauro e investigação em curso, após uma escavação trabalhosa.

História amplamente noticiada, entre outros, no "Telegraph", no "Guardian" e na BBC.
Aprecie-se também neste "site" uma excelente galeria de fotografias realizadas antes da remoção do navio.

O «Matthew» e a "Matthew Society"
Em 1497, o veneziano Giovanni Cabotto (naturalizado John Cabot) partiu de Bristol a bordo do «Matthew», numa viagem exploração que o levou até à Terra Nova.
O «Matthew», navio do séc. XV sobrevive também hoje em dia, mas em réplica, no porto de Bristol para prazer dos muitos turistas que já subiram a bordo e desfrutaram de pequenas excursões marítimas. Uma viagem a não perder, quando de visita a terras de Sua Magestade, evocando outros descobrimentos.

A "Matthew Society", fundada em 1996, organiza encontros abertos a todos os interessados e curiosos dedicados à História náutica e marítima de Setembro a Maio no "Jury's Hotel" em Bristol, mantendo contacto com o público interessado na História e nos navios que a fizeram.