segunda-feira, janeiro 05, 2004

A "Invencível" Armada regressa à Irlanda

Artefactos recuperados da nau «La Trinidad Valencera» irão formar o núcleo da nova exposição "The Armada in Ireland" relativa à "Invencível" Armada espanhola a organizar na Cidade de Derry, na Irlanda do Norte.
A British Lottery Fund providenciou 1,45 milhões de libras (cerca de 2,1 milhões de Euros) para financiamento do evento, que terá início no próximo mês. Trata-se de parte de um projecto maior de remodelação do Tower Museum da cidade, segundo notícia do "Ireland On-Line".

O Poder Naval de Filipe II contra a Ilha de Isabel I
No auge da Guerra Anglo-Espanhola, Filipe II de Espanha (e já então D. Filipe I de Portugal) ordenou a preparação de uma grande armada (denominada originalmente de "Felicíssima", tendo sido apelidada de "Invencível" apenas depois da derrota, pelos seus adversários) para invadir a Inglaterra, que partiu do estuário do Tejo, depois de muitos contratempos, em Junho de 1588. Após a bênção da bandeira Real na Sé catedral de Lisboa, o Duque de Medina Sidonia embarca no galeão «São Martinho», navio-almirante da armada fundeada no Tejo. Nesse momento, todas as atenções da Europa se concentravam na Armada reunida em Lisboa. Reunindo um total de cerca de 130 navios, entre galeões, naus, caravelas, galeaças e galés, e transportando pouco mais de 30.000 homens, a Grande Armada representou a manobra mais ambiciosa da Coroa espanhola no Século de Ouro das navegações.

Nesta armada contavam-se mais de 2.000 portugueses oficiais, soldados e marinheiros, um dos quais, António Martins, natural de Aveiro e piloto da nau «Trinidad Valencera», viria a ser um dos poucos sobreviventes de uma trágica aventura marítima.

Percurso Trágico de um Navio
A «Trinidad Valencera» (corruptela do seu nome veneziano, «Balanzara») era uma grande nau mercante veneziano fretada na Sicília pela Coroa espanhola.
No Verão de 1588, após o confronto com a frota inglesa ao largo de Gravelines (Bélgica) e batendo-se contra ventos contrários que os impediam de regressar para Sul pelo Canal da Mancha, a Armada retirou-se pela rota mais difícil, rodeando as perigosas costas das Ilhas Britânicas e os seus mares pouco conhecidos. Foi neste percurso, assolado por tempestades fora de época, que ceca de 35 navios naufragaram (por afundamento e encalhe), que a grande nau veneziana encontrou o seu último destino, sofrendo um encalhe e desfazendo-se nos baixios da Baía de Kinnagoe, no Condado de Donegal. Algumas centenas de homens puderam abandonar a nau antes de se afundar.

Incluída na esquadra do Levante (constituída por navios de transporte do Mediterrâneo), a nau teve o seu baptismo de fogo já ao largo da costa inglesa, quando a Grande Armada se aproximou de Portland Bill (recontro de 1 e 2 de Agosto), de novo defronte da ilha de Wight (2 e 3 de Agosto) e na manobra defensiva crucial de retaguarda travada na batalha ao largo de Gravelines (actual costa belga) entre 7 e 9 de Agosto, pouco antes da retirada da Armada em direcção ao temido Mar do Norte, iniciando o seu trágico regresso a Espanha.

No dia 20 de Agosto, rodeando a costa Norte da Escócia, o «Trinidad Valencera» e três outros navios separaram-se do principal núcleo da Armada; nenhum destes regressaria a Espanha. A 12 de Setembro, abateu-se uma forte tempestade sobre a nau da costa da Irlanda do Norte. Com o nível da água a subir no porão, a «Trinidad Valencera» ancorou na Baía de Kinnagoe dois dias depois, mas o seu estado era dificlmente recuperável. A tripulação decidiu-se por uma manobra desesperada e encalhou o navio deliberadamente para tentar sair em terra.

Salvos do inferno das ondas tormentosas, a maior parte dos homens desembarcou e instalou-se em abrigos improvisados em terra, entrando em contacto com a população nativa irlandesa que os asseguraram da sua boa vontade e auxílio contra o inimigo comum, a Coroa inglesa. Confiantes nestas palavras, os espanhóis foram apanhados desprevenidos e sem armas. Roubados os poucos bens pessoais que haviam conseguido resgatar e desnudados numa terra desconhecida, 300 homens (entre soldados e marinheiros acabaram por ser massacrados por um contingente anglo-irlandês numericamente inferior. Apenas 32 sobreviventes puderam escapar, fugindo para a Escócia com a ajuda de outros nativos menos traiçoeiros e daí seguiram furtivamente para França, onde foram resgatados pelo embaixador espanhol em Paris. Os oficiais foram enviados para Dublin, onde foram sentenciados à morte por ordens do Lord Deputy da Irlanda Sir William Fitzwilliam, em nome da raínha e da defesa de Inglaterra.

Descobertas Subaquáticas
O «Trinidad Valencera» é o naufrágio melhor estudado desta época. Arqueando 1.100 toneladas, medindo 36 metros de comprimento e armando 32 canhões, com 360 homens a bordo, a «Trinidad Valencera» era um dos maiores navios da Grande Armada.

Os vestígios do naufrágio foram descobertos na década de 1970 por um clube de mergulhadores local, tendo sido assessorados por Colin Martin, da Universidade de Saint Andrews (Escócia), famoso arqueólogo inglês e grande especialista nos navios da época da Armada (co-autor de um dos melhores estudos sobre esta campanha naval, The Spanish Armada (2002) e Full Fathom Five: Wrecks of the Spanish Armada (1975), além de vários artigos científicos em resultado das suas escavações).

Os mergulhadores recuperaram um amplo conjunto de artefactos relativos à vida a bordo, instrumentos náuticos e armamento de bordo, além de vestígios de equipamento militar destinado ao exército de invasão da Inglaterra. Deste arsenal sobressaem três enormes "cañones de batir" (canhões de cerco) em bronze, de 2 toneladas e meia cada, produto das melhores fundições do império espanhol, na actual Bélgica.

Alguns outros vestígios de navios da Grande Armada de 1588 foram descobertos e alvo de recuperações, como o «Gran Grifón», o «Girona» (por um caçador de tesouros) e o «Santa María de la Rosa». No seu conjunto, estes naufrágios vieram lançar nova luz sobre diversos aspectos do poder naval espanhol no final do século XVI, resultando numa vasta colecção de objectos cuja maior parte se guarda no Museu do Ulster.

Entre os vários artefactos a ser exibidos, encontram-se duas das grandes peças de artilharia de grande calibre, além de serviços de peças de estanho utilizados pelos oficiais a bordo, entre outros.

Espanha, Portugal e a Grande Armada contra Inglaterra de 1588
A questão do protagonismo marítimo no final do Renascimento ficou esclarecida com o fracasso da "Invencível" Armada. Embora o resultado do confronto naval no Canal da Mancha não tenha sido definitivo para a supremacia de qualquer dos antagonistas, o facto é que contribuiu para um avanço renovado das potências Protestantes da Europa do Norte nas diversas frentes de guerra do Império espanhol, marcando o fim da política expansionista dos Habsburgo de Espanha e a confirmação da decadência naval ibérica. Uma nova potência marítima emergira do Norte: chegara a vez de a Inglaterra começar a dominar os mares.

O «Marítimo» aproveita a ocasião desta inesperada notícia para "puxar a brasa à sua sardinha" e adiantar que em breve irá disponibilizar "on-line" parte do texto incluído no livro que de que fomos co-autor (juntamente com o Comandante Augusto Salgado), "A Invencível Armada (1588): A Participação Portuguesa" (Lisboa: Editora Prefácio, 2002) e do qual preparamos a segunda edição.

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